SEPTEMBER MMVI
conversa final
Há um ano atrás, apresentei em Braga a primeira parte do Vou A Tua Casa, com produção da Censura Orévia AC. Fiz 5 espectáculos para um total de 14 espectadores. Houve ainda uma festa e uma conversa final. De regresso a Braga, desta feita para realizar a edição número 6 do workshop Vou A Tua Casa, sinto vontade de tornar ainda mais públicos os resultados da dita conversa. Basicamente porque me encheram as medidas, e as do projecto também.
(...) Abrem-se as portas do E S P A Ç O em modo ressaca para um último fôlego de Vou A Tua Casa: a conversa. No chão estão espalhadas almofadas em círculo; recordo-me de ter bebido chá. Numa tela projecta-se o "best of" Vou A Tua Casa na forma de um slide show fotográfico. Aparecem em número mais pessoas que não assistiram ao espectáculo (em suas casas ou em casa de outrem) do que as que assistiram, o que para mim é completamente irrelevante. Disponibilizo-me, portanto, para responder a todas as perguntas, dúvidas e questionamentos existenciais, rebater argumentações, desconstruir falsas questões, edificar as boas reflexões, o que vier... Foi um momento único, e cúmplice, de absoluta partilha de inteligência (e, claro, de curiosidade), perpetrado por oito pessoas com graus de conhecimento diversos em relação ao projecto. Da transcrição exaustiva que fiz do resultado captado pela máquina de filmar, sintetizo tudo no seguinte telegrama:
JOANA
Eu não vi o espectáculo, por isso tenho muita curiosidade em saber o seguinte: quando entras, qual é a primeira coisa que fazes?
ROGÉRIO
Faço exactamente aquilo que faço quando vou a casa de alguém que não conheço: pergunto o nome, peço permissão para deixar a minha mochila e o meu casaco num qualquer sítio estratégico, vou até onde sinto que socialmente posso ir, ou então peço que me mostrem a casa; às vezes pergunto pela casa-de-banho, se preciso de lá ir. Tudo isto são pormenores que normalmente os espectadores não assumem como parte integrante do espectáculo, vêem-nos como uma introdução, uma espécie de warming up. Às vezes nem isso. Só quando eu começo a fazer qualquer coisa que de certa forma se afasta do "quotidiano" (o que nem sempre acontece…) é que o espectador assume que começou, embora para mim seja evidente que começou muito antes. Não me preocupa que este momento inicial possa ser ambíguo ou confuso para o espectador. Na verdade, não me interessa fazer este espectáculo de outra maneira. Se eu vou a tua casa, é porque quero estar próximo de ti, quero conhecer-te. Se eu quisesse que tu permanecesses "anónima", não me dava ao trabalho de ir ter contigo, fazia o espectáculo num palco convencional.
JOÃO PEDRO
Então se calhar o espectáculo não começa quando tu entras pela porta, começa antes. Isso remete-me para a questão das origens do próprio espectáculo…
ROGÉRIO
E essa questão é ainda mais flagrante no que respeita à segunda versão, o No Caminho. Na primeira versão é comum, ainda assim, atribuir-se o início à minha entrada e o fim à minha saída da casa, embora eu saiba, por intuição própria e por conhecimento daquela que é a opinião da grande maioria dos espectadores, que essas duas balizas são muito pouco nítidas, logo, discutíveis. No contexto específico do No Caminho, há espectadores para quem o espectáculo começou muito antes do momento em que o encontro efectivamente se deu. Do outro lado da equação, tens os espectadores para quem o espectáculo nunca mais acabou. Matematicamente, isto podia ser representado por uma qualquer ideia de "menos infinito" e de "mais infinito". Ideia performativamente "perigosa", mas interessante. Às vezes encontro-me com pessoas que conheci no Vou A Tua Casa e é para nós evidente que ainda estamos a viver uma performance que começou há 3 anos...
JOÃO PEDRO
Eu gostava então de reformular a pergunta da Joana e dizer: levas conceitos formados para o espectáculo, coisas que intuitivamente sabes que funcionam e que vais querer repetir, ou trabalhas com uma qualquer ideia de abismo, de desconhecido, em que são as pessoas a definir o jogo entre esses teus conceitos e aquilo que acabas por fazer?
ROGÉRIO
Levo na cabeça uma "ideia de espectáculo", sim. E levo, sobretudo, um conjunto de "regras" presenciais, a maioria delas de carácter intuitivo ou até inconsciente, que me irão ajudar a tomar decisões básicas: como agir, o que dizer, etc. Essa adaptação de um conceito a uma realidade prática e concreta (ainda que com contornos "desconhecidos") é obviamente necessária, mas não posso assumi-la como o conceito deste espectáculo. A ideia não é ter um espectáculo para fazer e ter que o adaptar a circunstâncias diferentes todos os dias. Isto não é um trabalho de site-specificity ou de transferibilidade de uma qualquer ideia de site-specificity. O espaço e as suas contingências são um pretexto, não são a razão de ser deste espectáculo. O espaço não interessa para nada.
MARIANA
Então o que é que interessa?
ROGÉRIO
Na segunda parte da pergunta, o João Pedro refere-se ao trabalho de mediação conceptual que é realizado na óptica do observador. Era aí que eu gostava de poder reflectir. Penso que é o espectador que acaba por delinear esse set de regras presenciais que eu, como performer, me encontro a trabalhar, às vezes a um nível, como disse, inconsciente. É ele o produtor de todos os sentidos. Eu apenas respondo a estímulos, mais ou menos sensoriais, mais ou menos intelectuais, e devolvo depois qualquer coisa atravessada pela minha emocionalidade e inteligência. O espectador, mesmo sabendo que algo não está a ser trabalhado "conscientemente" por mim, obriga-se a uma produção de sentidos dentro da mecânica do próprio espectáculo. Ou seja, é ele que "cria" o espectáculo, e não eu. No espectáculo em casa do Hugo, o livro que eu abro e leio ao calhas ganha de repente uma dimensão transcendental: aquilo que digo bate certo com o que acabei de dizer no momento imediatamente anterior, não porque eu (ou o espectáculo) tenhamos poderes sobrenaturais, simplesmente porque estamos inseridos (eu e os espectadores) num território altamente sensível e atento. Trata-se de um espectáculo; como tal, até os objectos de uso diário daquele espectador passam a ser "significantes". É este poder criativo inerente ao olhar do espectador que me interessa trabalhar. E isto leva-me a perguntar: como é que vocês [Clara e Sandra], que viram o espectáculo, se revêem nisto que eu acabei de dizer?
SANDRA
Como eu te conheço muito bem, preferi ficar quieta e calada; não quis provocar nada, porque senti que tudo o que fizesse seria falso e artificial. E então preferi ser uma espectadora "passiva". Mas estou no espaço de todas as emoções. Não tenho pessoas desconhecidas ao meu lado como num teatro, que me impedem, por exemplo, de chorar, por vergonha… Fiz muitas coisas que jamais faria num teatro. Por isso, não sei muito bem até que ponto é que esta "passividade" de facto se efectivou.
ROGÉRIO
A proximidade é uma coisa muito especial. E não depende do espaço. Repito: o espaço é apenas um pretexto para que essa proximidade aconteça e se construa. Por isso eu rejeito a ideia de que o Vou A Tua Casa seja um trabalho sobre o espaço. Ele usa o espaço (e os seus objectos) em prol de uma outra coisa. Mas também sei que muitas vezes é o espectador o primeiro a criar esses novos sentidos "espaciais" e a olhar para a sua casa de uma forma diferente, não porque eu esteja a fazer esse trabalho, apenas porque estou presente. Fiz um espectáculo em casa de uma amiga há 3 anos para o qual levei vestida uma t-shirt com a palavra GENIUS. Passados uns dias, encontrámo-nos para falar sobre o espectáculo e ela diz-me que houve uma coisa que a incomodou: o "figurino". Achou-o demasiado "pretensioso". É interessante ver como a roupa que eu vesti nesse dia, sem qualquer intenção de com ela dizer fosse o que fosse (a não ser: "estou vestido"), se transforma de repente num "figurino". Assim como é interessante ver como a simples ideia de "espectáculo" (que não é nada simples…) fez com que aquela espectadora (que me conhece muito bem, assim como à t-shirt!) estabelecesse um sentido extra-quotidiano para um dos elementos em jogo. Se eu quisesse ser básico, diria, rematando: "A vida é um teatro, e todos somos actores; então vamos levar isso até às últimas consequências!". Sinto muitas vezes que o meu trabalho tem esta função quase-científica de funcionar como uma lupa, que eu coloco em cima desse chavão de bolso que diz que "todos somos actores", como forma de o ampliar e de o tornar discurso. O método que uso é o da observação participante e o objectivo que persigo é o de "dizer a verdade", sempre (ideia envolvida de documentalidade cujas origens eu consigo atribuir à minha formação em Jornalismo). E tal acontece mesmo que essa verdade seja uma verdade manipulada, ampliada, reduzida, exagerada, ou até mesmo "falsa" (porque existem "verdades falsas", ou "falsas verdades"). Mas tudo isto acontece, em espectáculo, de uma forma absolutamente democrática: eu sou cobaia desta experiência teatral na mesma medida que tu também o és. Não me interessa nada fazer um mero trabalho teórico de antropologia teatral, ou de construir experiências próximas de um qualquer "teatro invisível"; não quero surpreender as pessoas com uma ideia de espectáculo para o qual elas não foram convocadas. Ontem, quando fiz um "espectáculo-surpresa" para uma aniversariante, a primeira coisa que lhe disse mal entrei foi: "Olá, eu sou o Rogério, e vou fazer para ti um espectáculo chamado Vou A Tua Casa". Interessa-me que a pessoa saiba que há um compromisso e uma enunciação de espectáculo feita de antemão. Só assim ela poderá ser criadora efectiva do que vai ver a seguir.
LUÍS
Tenho duas perguntas muito simples, que são também duas curiosidades minhas. A primeira diz respeito a todo o lado visual do teu projecto, as coisas às quais eu tenho acesso através dos e-mails que recebo e das fotografias que vejo. Por exemplo, a recorrência às folhas de papel e às mensagens escritas em papel…
ROGÉRIO
Tenho, desde que me conheço, um fetiche com papel, canetas, tesouras e fita-cola. São as coisas com que eu brincava todos os dias quando era criança. E são os objectos/ferramentas que hoje fazem parte de todos os meus processos criativos. Uso-os por uma razão assumidamente facilitista: gosto de trabalhar com o que já conheço. E claro, a tal documentalidade de que falei acaba sempre por me obrigar a levar essas coisas comigo para os espectáculos. Não é, portanto, uma questão "estética" que eu tenha trabalhado, ou uma decisão estilística do ponto de vista meramente formal. É, antes, uma resposta ao tal espírito científico que me diz para fazer prova de uma determinada realidade observável; neste caso, a própria realidade do processo que me trouxe até aqui. E depois são materiais muito práticos, fáceis de transportar, e servem para muita coisa: fixação de memórias, colar coisas que não devemos esquecer na parede, etc… São, por isso também, objectos-metáfora muito fortes.
LUÍS
A minha segunda curiosidade diz respeito aos tipos de público. Com este teu Projecto de Documentação, acredito que tenhas feito algum trabalho estatístico a esse nível. quais são as conclusões?
ROGÉRIO
Estou a fazer esse trabalho; uma das componentes do catálogo é uma espécie de cronologia exaustiva do projecto, que incluirá também alguns dados estatísticos. De momento, não tenho números certos para te dar, mas posso dizer-te que uma grande fatia do público do Vou A Tua Casa está de uma forma ou de outra ligada ao meio artístico, facto que não me chateia nada. Desde a estreia, em Agosto de 2003, até sensivelmente Junho de 2005, quando apresento a primeira versão processual do Lado C, a relação deste espectáculo com o público vai-se afunilando cada vez mais: os espectadores vão-se tornando mais especializados, e eu próprio vou aproveitando isso, adequando o projecto a uma dimensão sobremaneira mais teorizante. É aqui que começam a entrar em cena os chamados "observadores". Só este ano, com a apresentação da segunda versão do Lado C no Festival Alkantara, é que o projecto voltou a reconciliar-se com o público geral, não por eu o ter mudado, simplesmente porque foi apresentado num contexto específico, que o tornou mais visível. É interessante verificar que a grande maioria das pessoas que viram o Lado C no Alkantara nunca tinham visto um único espectáculo meu. Ou seja, entraram no universo Vou A Tua Casa pela porta de saída.
LUÍS
Devem ser experiências diferentes, as que acontecem com público conhecedor e as que não… Tens preferências?
ROGÉRIO
Três anos é muito tempo; dá para recolher todo o tipo de experiências e de combinações diferentes de público dentro do mesmo espectáculo. E não me refiro só ao grau de conhecimento em relação ao projecto; existem dezenas de outras variáveis. Cada espectáculo é único, por isso é tão difícil para mim seleccionar algo que possa ser representativo. Mas posso falar-te de uma "tipologia" rara no contexto específico do Lado A, que são os espectáculos feitos para um só espectador. Contam-se pelos dedos de uma mão os que fiz, e porque foram sempre momentos muito especiais, ficaram gravados na minha memória de uma maneira diferente. Tratam-se de exercícios que se aproximam da exigência conceptual do No Caminho, mas no espaço próprio do espectador. São muito poucas as pessoas que se permitem a uma experiência dessas: o grau de exposição pessoal e emocional pode ser muito violento para ambas as partes. Tiro-lhes o chapéu pela coragem! Foram momentos que acabaram sempre por inaugurar qualquer coisa nova para o projecto, como o espectáculo que fiz com o Paulo Bessa cá em Braga, que foi fantástico!
SANDRA
Quando dizes que foi "fantástico", que critérios assistem a essa tua avaliação?
ROGÉRIO
Não são obviamente critérios do foro "técnico" (texto bem dito, voz colocada, marcações cumpridas, etc.). Trata-se antes de uma eficácia ao nível do trabalho que é feito para se atingir a tal proximidade de que falávamos. Gostava de poder dizer que essa "proximidade", e ao contrário do que muitas pessoas pensam, não tem nada a ver com um qualquer trabalho de manipulação emotiva que eu decido engendrar para conseguir "tocar" as pessoas. Diz antes respeito à vontade (que começa por ser minha) de que algo verdadeiramente "humano" aconteça. E isso só se consegue pela evidência de uma proximidade bem trabalhada por ambas as partes. Eu não posso responsabilizar-me totalmente pelo maior ou menor sucesso de um espectáculo. Os espectadores têm que ser tão competentes quanto eu em relação à totalidade daquela experiência, não na condição de performers, mas na condição de pessoas. Por muito que seja duro ouvir isto, e estou a dirigir-me especificamente aos espectadores especializados (mais concretamente ainda àqueles que se dizem críticos), o público do Vou A Tua Casa tem uma responsabilidade acrescida perante essa coisa a que grosseiramente podemos apelidar de "eficácia do espectáculo". Se algo corre mal, pode muito bem acontecer por culpa deles! E não me venham com a história de que eu, como responsável artístico por um projecto, devo arranjar maneiras de contornar uma possível situação desequilibrante, que possa eventualmente pôr em causa a própria ética do observador. Quando tu aceitas que um estranho entre em tua casa e faça um espectáculo para ti, não podes demitir-te! Isso poria em causa a tua honestidade como espectadora, fosse qual fosse o grau de conhecimento em relação ao projecto. A ética do observador é uma questão carregadíssima de peso pós-moderno, mas infelizmente ainda continua a ser analisada de acordo com premissas classicistas: tu pagas para ver algo que alguém preparou para ti. O projecto, a partir de 2004 para a frente, começa também a sustentar isso e a auto-legitimar-se de várias maneiras: tu só pagas pela performance se achares que deves, por exemplo, podendo acontecer ser eu a pagar-te a ti, caso seja evidente para ambos que foste tu quem "criou" o espectáculo.
CLARA
Mas ainda assim as pessoas têm o direito de se sentir defraudadas…
ROGÉRIO
Como em qualquer espectáculo! A margem de subjectividade na forma como o mesmo é recebido é sempre um dado a considerar. E ou se gosta ou não se gosta; pouco mais há a acrescentar a isto. Mas posso responder positivamente à tua pergunta, sem ter que a desconstruir: tal como na vida, o excesso de informação ou o excesso de expectativas podem ser inimigos terríveis para a fruição deste espectáculo. As pessoas têm tendência para efabular coisas à volta do Vou A Tua Casa que o projecto não contempla: essa questão da interactividade, por exemplo, que eu pessoalmente abomino. E depois, segundo uma regra perigosa e assumidamente generalista, as pessoas nem sempre estão preparadas para serem confrontadas com a sua própria realidade; estamos todos programados para levar com mentiras em cima, ou com ilusões, com as tais "verdades falsas". E de repente chega um gajo a tua casa e oferece-te um livro, que tirou da tua estante, embrulhando-o em papel colorido que ele próprio trouxe na mochila, como que para te fazer lembrar que aquele gesto existe naquele objecto que já era teu, algo que muito possivelmente tu já havias recambiado para um qualquer sítio inutilizado do teu cérebro. O teatro é o contrário da nossa casa, diria o Gasset. É legítimo que tu, como espectadora, não te interesses por essa confrontação, mas então se calhar é um erro quereres entrar no Vou A Tua Casa. Eu não acho que o espectáculo seja para toda a gente. Nenhum espectáculo é para toda a gente, nem deve ser. Isso é demagogia bacoca. Nenhuma razão deve assistir à ideia de que tu deves ir ver um espectáculo, sabendo à partida que não estás com pachorra para. Se não estás com pachorra para, prefiro que fiques no tal sítio que não é o teatro; prefiro que fiques em casa.
SANDRA
Então o que é que fez do Paulo um espectador "competente", de acordo com o que acabaste de dizer?
ROGÉRIO
O facto de ele ter sido o mais honesto possível com a sua condição de espectador e com as expectativas que tinha em relação ao espectáculo. E porque isto é um jogo duplo, também o facto de eu ter sido verdadeiro na forma como geri as minhas próprias emoções e sensações, durante o tempo em que lá estive. Ele começou por me contar histórias. Histórias de viagens. Eu senti curiosidade "verdadeira" em ouvir essas histórias e deixei-me levar por elas. A única questão performativa a retirar daqui é: até onde é que isto nos pode levar? E o espectáculo é construído em cima dessa questão, exclusivamente. Outra ilação de cariz antropo-sociológico: estamos todos programados para fazer e matar possibilidades ainda antes delas existirem em concreto, por acharmos que estamos a ser chatos, ou que a coisa já deu o que tinha a dar, etc, etc., etc. Já para não falar dessa absurda obrigação que qualquer performer tem de, por estar num espectáculo, ter que dar espectáculo. Eu tento contornar isso a favor de algo que não chega a ser nem mais próximo da vida, nem mais próximo da arte, antes uma espécie de nova "humanidade", uma zona inspirada em ambas as coisas, pela forma como tempo e espaço são trabalhados pelas duas pessoas em uníssono. Claro que esta é uma relação muito delicada, por serem justamente duas cabeças a pensar. Eu não posso fazer um exercício destes apenas de mim para comigo; daí a minha paranóia com a exposição informativa e com as declarações prévias de intenções. Ao fim de 15 minutos a contar histórias, o Paulo parou e disse: "Quando quiseres, podes começar." E eu respondi: "Já começou!" Ele aceitou, sorriu, e continuou a contar as suas histórias. 90% do espectáculo foi falado por ele, mas o espectáculo foi feito pelos dois. é isto o "vou a tua casa".
JOÃO PEDRO
Eu gostava de voltar à questão do espaço e discuti-la a partir da própria enunciação do título — Vou A Tua Casa. Porque a palavra "casa" está lá, remete-nos para um espaço concreto e definido, mas no entanto é o verbo "ir" que tem mais força. Ou seja, o título é quase todo ele só acção…
ROGÉRIO
Exactamente. É essa a mais simples construção conceptual deste projecto, que eu tentei que fosse clara logo desde o título: um actor que vai a tua casa. Não é uma ideia, não é uma sensação, não é um nome, não é um modo, é uma acção. O elemento "casa" é meramente paisagístico; é o tapete em cima do qual a relação entre os elementos observador e fazedor se constrói, sempre em direcção a um possível espectáculo. Esta minha recusa em assumir o espaço para além da sua condição de simples pretexto trouxe-me alguns dissabores. A maior parte dos desapontamentos de algumas pessoas em relação ao No Caminho, por exemplo, deveu-se ao facto de eu não ter trabalhado o espaço por elas escolhido de uma maneira "artística". De ter sido até displicente em relação a ele. Foram muitos os casos em que mudámos de sítio mais que uma vez durante o espectáculo. Se calhar eu confio demasiado na literalidade do título; pode ser uma ingenuidade minha. Mas também sei — e vou avançar com mais uma das minhas ilações antropológicas —, que nós, pessoas que vemos e que fazemos espectáculos, não estamos propriamente preparados para aceitar a literalidade de bom grado. Ou para a ver como uma coisa "artisticamente" interessante, para ser mais exacto. E eu acho uma pena… Um amigo da Clara e da Sandra, quando recebeu informação sobre o espectáculo, não acreditou que fosse mesmo suposto ele acontecer nas casas dos espectadores; pensou que o título era uma metáfora de outra coisa qualquer, e que o espectáculo acontecia num palco. Ou seja, pôs mais camadas significantes em cima do título por não lhe bastar a primeira e mais básica camada de todas. Isto explica tudo...
RUI
Portanto, o espectador deste espectáculo não é um espectador "passivo", mas também não é um espectador "interactivo". Que nome é que achas que podias dar para o classificar?
ROGÉRIO
"Participativo” seria talvez a palavra mais adequada. Mas eu prefiro "criativo", apesar de ter consciência que se trata de uma escolha falível. Digo "criativo" para poder imbuir a figura do espectador dessa capacidade, de que já falei, que é a produção de sentidos. Na minha condição de intérprete deste espectáculo, eu sou tão mais bem sucedido quanto mais for capaz de me demitir dessa tarefa de significar tudo aquilo que faço e tudo aquilo que acontece. Quanto mais eu recusar uma série de "merdas" que dizem respeito às coisas que eu já sei, ao facto de já ter feito uma série de espectáculos e de saber umas coisitas sobre teatro, ou quanto mais eu me surpreender comigo próprio e me deixar levar por um momento ou situação que me está constantemente a trair como actor (e até mesmo como criador), maior será o espaço dado ao espectador para que este seja efectivamente "criador" do espectáculo. Um amigo meu, actor, dizia-me que durante o espectáculo em casa dele, quando eu mexia num objecto, o objecto transformava-se, passava a ser outra coisa qualquer, mesmo que eu não fizesse absolutamente nada a não ser segurá-lo na mão. O compromisso "espectáculo" transforma uma simples chávena de café num elemento produtor de sentidos; e quanto mais eu for capaz de usar aquela chávena na sua função básica e essencial (beber café), em vez de tentar com ela fazer algo que não pertence a essa função (pô-la na cabeça a servir de chapéu), mais o exercício se torna desafiador e interessante para o espectador.
CLARA
Qual foi a melhor coisa que este projecto te deu, profissional ou pessoalmente?
ROGÉRIO
Este projecto tem-me dado muitos prémios. Quase todos vêm da relação que os espectadores estabelecem comigo e com o espectáculo, durante e após a sua concretização. Muitas vezes, eu só me apercebo dos efeitos causados pelos encontros algum tempo ou mesmo muito tempo depois. Este Projecto de Documentação tem provocado uma aceleração desse processo, por isso tenho hoje muitos exemplos que te posso dar. Um dos mais recentes tem a ver com um espectador do No Caminho, que levou para casa uma minúscula planta com raiz que eu arranquei de um canteiro para lhe oferecer durante o espectáculo, em 2005. Passado um ano e meio, volto a encontrar-me com ele, por causa do Projecto de Documentação, e ele diz-me que a planta entretanto cresceu e continua viva num vaso em casa dele. Isto pode parecer muito banal (são muitas as pessoas que guardam bilhetes de espectáculos como recordação, por exemplo), mas a verdade é que a maioria dos espectáculos valem por si, não se substituem a esse acto de partilha de memória. No caso do Vou A Tua Casa, quando um programador me pede o DVD do espectáculo, eu só me dá vontade de lhe enviar uma fotografia da planta que o Diogo cuidou durante um ano e meio. Porque é aí que está o espectáculo, indubitavelmente. E isto é, também para mim, um "prémio", um reconhecimento da forma como as coisas que faço podem de facto tocar as pessoas e isso ser de certa forma devolvido ao destinatário. Vou ser piroso e dizer que o meu mérito profissional e artístico tem sido galardoado pelos espectadores. E eu fico muito feliz com isso. Trata-se de um reconhecimento totalmente parcial, individual e particularizado, logo, muito mais autêntico e legítimo do que o reconhecimento da crítica ou de qualquer outra realidade mais ou menos instituída (que é tão parcial, individualizada e particularizada como a anterior, só que hipocritamente camuflada com a ideia oposta). Depois do Projecto de Documentação terminar, o meu lema vai passar a ser POWER TO THE PEOPLE!. A oportunidade dos espectadores invadirem literalmente uma coisa da qual eles já fazem parte, mas para tomarem conta dela. Em definitivo.
LUÍS
Tenho duas perguntas muito simples, que são também duas curiosidades minhas. A primeira diz respeito a todo o lado visual do teu projecto, as coisas às quais eu tenho acesso através dos e-mails que recebo e das fotografias que vejo. Por exemplo, a recorrência às folhas de papel e às mensagens escritas em papel…
ROGÉRIO
Tenho, desde que me conheço, um fetiche com papel, canetas, tesouras e fita-cola. São as coisas com que eu brincava todos os dias quando era criança. E são os objectos/ferramentas que hoje fazem parte de todos os meus processos criativos. Uso-os por uma razão assumidamente facilitista: gosto de trabalhar com o que já conheço. E claro, a tal documentalidade de que falei acaba sempre por me obrigar a levar essas coisas comigo para os espectáculos. Não é, portanto, uma questão "estética" que eu tenha trabalhado, ou uma decisão estilística do ponto de vista meramente formal. É, antes, uma resposta ao tal espírito científico que me diz para fazer prova de uma determinada realidade observável; neste caso, a própria realidade do processo que me trouxe até aqui. E depois são materiais muito práticos, fáceis de transportar, e servem para muita coisa: fixação de memórias, colar coisas que não devemos esquecer na parede, etc… São, por isso também, objectos-metáfora muito fortes.
LUÍS
A minha segunda curiosidade diz respeito aos tipos de público. Com este teu Projecto de Documentação, acredito que tenhas feito algum trabalho estatístico a esse nível. quais são as conclusões?
ROGÉRIO
Estou a fazer esse trabalho; uma das componentes do catálogo é uma espécie de cronologia exaustiva do projecto, que incluirá também alguns dados estatísticos. De momento, não tenho números certos para te dar, mas posso dizer-te que uma grande fatia do público do Vou A Tua Casa está de uma forma ou de outra ligada ao meio artístico, facto que não me chateia nada. Desde a estreia, em Agosto de 2003, até sensivelmente Junho de 2005, quando apresento a primeira versão processual do Lado C, a relação deste espectáculo com o público vai-se afunilando cada vez mais: os espectadores vão-se tornando mais especializados, e eu próprio vou aproveitando isso, adequando o projecto a uma dimensão sobremaneira mais teorizante. É aqui que começam a entrar em cena os chamados "observadores". Só este ano, com a apresentação da segunda versão do Lado C no Festival Alkantara, é que o projecto voltou a reconciliar-se com o público geral, não por eu o ter mudado, simplesmente porque foi apresentado num contexto específico, que o tornou mais visível. É interessante verificar que a grande maioria das pessoas que viram o Lado C no Alkantara nunca tinham visto um único espectáculo meu. Ou seja, entraram no universo Vou A Tua Casa pela porta de saída.
LUÍS
Devem ser experiências diferentes, as que acontecem com público conhecedor e as que não… Tens preferências?
ROGÉRIO
Três anos é muito tempo; dá para recolher todo o tipo de experiências e de combinações diferentes de público dentro do mesmo espectáculo. E não me refiro só ao grau de conhecimento em relação ao projecto; existem dezenas de outras variáveis. Cada espectáculo é único, por isso é tão difícil para mim seleccionar algo que possa ser representativo. Mas posso falar-te de uma "tipologia" rara no contexto específico do Lado A, que são os espectáculos feitos para um só espectador. Contam-se pelos dedos de uma mão os que fiz, e porque foram sempre momentos muito especiais, ficaram gravados na minha memória de uma maneira diferente. Tratam-se de exercícios que se aproximam da exigência conceptual do No Caminho, mas no espaço próprio do espectador. São muito poucas as pessoas que se permitem a uma experiência dessas: o grau de exposição pessoal e emocional pode ser muito violento para ambas as partes. Tiro-lhes o chapéu pela coragem! Foram momentos que acabaram sempre por inaugurar qualquer coisa nova para o projecto, como o espectáculo que fiz com o Paulo Bessa cá em Braga, que foi fantástico!
SANDRA
Quando dizes que foi "fantástico", que critérios assistem a essa tua avaliação?
ROGÉRIO
Não são obviamente critérios do foro "técnico" (texto bem dito, voz colocada, marcações cumpridas, etc.). Trata-se antes de uma eficácia ao nível do trabalho que é feito para se atingir a tal proximidade de que falávamos. Gostava de poder dizer que essa "proximidade", e ao contrário do que muitas pessoas pensam, não tem nada a ver com um qualquer trabalho de manipulação emotiva que eu decido engendrar para conseguir "tocar" as pessoas. Diz antes respeito à vontade (que começa por ser minha) de que algo verdadeiramente "humano" aconteça. E isso só se consegue pela evidência de uma proximidade bem trabalhada por ambas as partes. Eu não posso responsabilizar-me totalmente pelo maior ou menor sucesso de um espectáculo. Os espectadores têm que ser tão competentes quanto eu em relação à totalidade daquela experiência, não na condição de performers, mas na condição de pessoas. Por muito que seja duro ouvir isto, e estou a dirigir-me especificamente aos espectadores especializados (mais concretamente ainda àqueles que se dizem críticos), o público do Vou A Tua Casa tem uma responsabilidade acrescida perante essa coisa a que grosseiramente podemos apelidar de "eficácia do espectáculo". Se algo corre mal, pode muito bem acontecer por culpa deles! E não me venham com a história de que eu, como responsável artístico por um projecto, devo arranjar maneiras de contornar uma possível situação desequilibrante, que possa eventualmente pôr em causa a própria ética do observador. Quando tu aceitas que um estranho entre em tua casa e faça um espectáculo para ti, não podes demitir-te! Isso poria em causa a tua honestidade como espectadora, fosse qual fosse o grau de conhecimento em relação ao projecto. A ética do observador é uma questão carregadíssima de peso pós-moderno, mas infelizmente ainda continua a ser analisada de acordo com premissas classicistas: tu pagas para ver algo que alguém preparou para ti. O projecto, a partir de 2004 para a frente, começa também a sustentar isso e a auto-legitimar-se de várias maneiras: tu só pagas pela performance se achares que deves, por exemplo, podendo acontecer ser eu a pagar-te a ti, caso seja evidente para ambos que foste tu quem "criou" o espectáculo.
CLARA
Mas ainda assim as pessoas têm o direito de se sentir defraudadas…
ROGÉRIO
Como em qualquer espectáculo! A margem de subjectividade na forma como o mesmo é recebido é sempre um dado a considerar. E ou se gosta ou não se gosta; pouco mais há a acrescentar a isto. Mas posso responder positivamente à tua pergunta, sem ter que a desconstruir: tal como na vida, o excesso de informação ou o excesso de expectativas podem ser inimigos terríveis para a fruição deste espectáculo. As pessoas têm tendência para efabular coisas à volta do Vou A Tua Casa que o projecto não contempla: essa questão da interactividade, por exemplo, que eu pessoalmente abomino. E depois, segundo uma regra perigosa e assumidamente generalista, as pessoas nem sempre estão preparadas para serem confrontadas com a sua própria realidade; estamos todos programados para levar com mentiras em cima, ou com ilusões, com as tais "verdades falsas". E de repente chega um gajo a tua casa e oferece-te um livro, que tirou da tua estante, embrulhando-o em papel colorido que ele próprio trouxe na mochila, como que para te fazer lembrar que aquele gesto existe naquele objecto que já era teu, algo que muito possivelmente tu já havias recambiado para um qualquer sítio inutilizado do teu cérebro. O teatro é o contrário da nossa casa, diria o Gasset. É legítimo que tu, como espectadora, não te interesses por essa confrontação, mas então se calhar é um erro quereres entrar no Vou A Tua Casa. Eu não acho que o espectáculo seja para toda a gente. Nenhum espectáculo é para toda a gente, nem deve ser. Isso é demagogia bacoca. Nenhuma razão deve assistir à ideia de que tu deves ir ver um espectáculo, sabendo à partida que não estás com pachorra para. Se não estás com pachorra para, prefiro que fiques no tal sítio que não é o teatro; prefiro que fiques em casa.
SANDRA
Então o que é que fez do Paulo um espectador "competente", de acordo com o que acabaste de dizer?
ROGÉRIO
O facto de ele ter sido o mais honesto possível com a sua condição de espectador e com as expectativas que tinha em relação ao espectáculo. E porque isto é um jogo duplo, também o facto de eu ter sido verdadeiro na forma como geri as minhas próprias emoções e sensações, durante o tempo em que lá estive. Ele começou por me contar histórias. Histórias de viagens. Eu senti curiosidade "verdadeira" em ouvir essas histórias e deixei-me levar por elas. A única questão performativa a retirar daqui é: até onde é que isto nos pode levar? E o espectáculo é construído em cima dessa questão, exclusivamente. Outra ilação de cariz antropo-sociológico: estamos todos programados para fazer e matar possibilidades ainda antes delas existirem em concreto, por acharmos que estamos a ser chatos, ou que a coisa já deu o que tinha a dar, etc, etc., etc. Já para não falar dessa absurda obrigação que qualquer performer tem de, por estar num espectáculo, ter que dar espectáculo. Eu tento contornar isso a favor de algo que não chega a ser nem mais próximo da vida, nem mais próximo da arte, antes uma espécie de nova "humanidade", uma zona inspirada em ambas as coisas, pela forma como tempo e espaço são trabalhados pelas duas pessoas em uníssono. Claro que esta é uma relação muito delicada, por serem justamente duas cabeças a pensar. Eu não posso fazer um exercício destes apenas de mim para comigo; daí a minha paranóia com a exposição informativa e com as declarações prévias de intenções. Ao fim de 15 minutos a contar histórias, o Paulo parou e disse: "Quando quiseres, podes começar." E eu respondi: "Já começou!" Ele aceitou, sorriu, e continuou a contar as suas histórias. 90% do espectáculo foi falado por ele, mas o espectáculo foi feito pelos dois. é isto o "vou a tua casa".
JOÃO PEDRO
Eu gostava de voltar à questão do espaço e discuti-la a partir da própria enunciação do título — Vou A Tua Casa. Porque a palavra "casa" está lá, remete-nos para um espaço concreto e definido, mas no entanto é o verbo "ir" que tem mais força. Ou seja, o título é quase todo ele só acção…
ROGÉRIO
Exactamente. É essa a mais simples construção conceptual deste projecto, que eu tentei que fosse clara logo desde o título: um actor que vai a tua casa. Não é uma ideia, não é uma sensação, não é um nome, não é um modo, é uma acção. O elemento "casa" é meramente paisagístico; é o tapete em cima do qual a relação entre os elementos observador e fazedor se constrói, sempre em direcção a um possível espectáculo. Esta minha recusa em assumir o espaço para além da sua condição de simples pretexto trouxe-me alguns dissabores. A maior parte dos desapontamentos de algumas pessoas em relação ao No Caminho, por exemplo, deveu-se ao facto de eu não ter trabalhado o espaço por elas escolhido de uma maneira "artística". De ter sido até displicente em relação a ele. Foram muitos os casos em que mudámos de sítio mais que uma vez durante o espectáculo. Se calhar eu confio demasiado na literalidade do título; pode ser uma ingenuidade minha. Mas também sei — e vou avançar com mais uma das minhas ilações antropológicas —, que nós, pessoas que vemos e que fazemos espectáculos, não estamos propriamente preparados para aceitar a literalidade de bom grado. Ou para a ver como uma coisa "artisticamente" interessante, para ser mais exacto. E eu acho uma pena… Um amigo da Clara e da Sandra, quando recebeu informação sobre o espectáculo, não acreditou que fosse mesmo suposto ele acontecer nas casas dos espectadores; pensou que o título era uma metáfora de outra coisa qualquer, e que o espectáculo acontecia num palco. Ou seja, pôs mais camadas significantes em cima do título por não lhe bastar a primeira e mais básica camada de todas. Isto explica tudo...
RUI
Portanto, o espectador deste espectáculo não é um espectador "passivo", mas também não é um espectador "interactivo". Que nome é que achas que podias dar para o classificar?
ROGÉRIO
"Participativo” seria talvez a palavra mais adequada. Mas eu prefiro "criativo", apesar de ter consciência que se trata de uma escolha falível. Digo "criativo" para poder imbuir a figura do espectador dessa capacidade, de que já falei, que é a produção de sentidos. Na minha condição de intérprete deste espectáculo, eu sou tão mais bem sucedido quanto mais for capaz de me demitir dessa tarefa de significar tudo aquilo que faço e tudo aquilo que acontece. Quanto mais eu recusar uma série de "merdas" que dizem respeito às coisas que eu já sei, ao facto de já ter feito uma série de espectáculos e de saber umas coisitas sobre teatro, ou quanto mais eu me surpreender comigo próprio e me deixar levar por um momento ou situação que me está constantemente a trair como actor (e até mesmo como criador), maior será o espaço dado ao espectador para que este seja efectivamente "criador" do espectáculo. Um amigo meu, actor, dizia-me que durante o espectáculo em casa dele, quando eu mexia num objecto, o objecto transformava-se, passava a ser outra coisa qualquer, mesmo que eu não fizesse absolutamente nada a não ser segurá-lo na mão. O compromisso "espectáculo" transforma uma simples chávena de café num elemento produtor de sentidos; e quanto mais eu for capaz de usar aquela chávena na sua função básica e essencial (beber café), em vez de tentar com ela fazer algo que não pertence a essa função (pô-la na cabeça a servir de chapéu), mais o exercício se torna desafiador e interessante para o espectador.
CLARA
Qual foi a melhor coisa que este projecto te deu, profissional ou pessoalmente?
ROGÉRIO
Este projecto tem-me dado muitos prémios. Quase todos vêm da relação que os espectadores estabelecem comigo e com o espectáculo, durante e após a sua concretização. Muitas vezes, eu só me apercebo dos efeitos causados pelos encontros algum tempo ou mesmo muito tempo depois. Este Projecto de Documentação tem provocado uma aceleração desse processo, por isso tenho hoje muitos exemplos que te posso dar. Um dos mais recentes tem a ver com um espectador do No Caminho, que levou para casa uma minúscula planta com raiz que eu arranquei de um canteiro para lhe oferecer durante o espectáculo, em 2005. Passado um ano e meio, volto a encontrar-me com ele, por causa do Projecto de Documentação, e ele diz-me que a planta entretanto cresceu e continua viva num vaso em casa dele. Isto pode parecer muito banal (são muitas as pessoas que guardam bilhetes de espectáculos como recordação, por exemplo), mas a verdade é que a maioria dos espectáculos valem por si, não se substituem a esse acto de partilha de memória. No caso do Vou A Tua Casa, quando um programador me pede o DVD do espectáculo, eu só me dá vontade de lhe enviar uma fotografia da planta que o Diogo cuidou durante um ano e meio. Porque é aí que está o espectáculo, indubitavelmente. E isto é, também para mim, um "prémio", um reconhecimento da forma como as coisas que faço podem de facto tocar as pessoas e isso ser de certa forma devolvido ao destinatário. Vou ser piroso e dizer que o meu mérito profissional e artístico tem sido galardoado pelos espectadores. E eu fico muito feliz com isso. Trata-se de um reconhecimento totalmente parcial, individual e particularizado, logo, muito mais autêntico e legítimo do que o reconhecimento da crítica ou de qualquer outra realidade mais ou menos instituída (que é tão parcial, individualizada e particularizada como a anterior, só que hipocritamente camuflada com a ideia oposta). Depois do Projecto de Documentação terminar, o meu lema vai passar a ser POWER TO THE PEOPLE!. A oportunidade dos espectadores invadirem literalmente uma coisa da qual eles já fazem parte, mas para tomarem conta dela. Em definitivo.