terça-feira, junho 07, 2005

encontro no caminho.

RUA CASTILHO, 14

[ao pé da estátua]


17 de Fevereiro de 2005




Depois de algumas incursões fotográficas ao universo da rua, e outras (musicais) ao universo do Diogo e do seu discman, acontece isto:


ROGÉRIO
Estou a gostar deste silêncio entre nós. A única coisa que nos une é a tua música. E a “ideia” de performance. Não me apetece falar. Não te conheço. Faz-me perguntas.

DIOGO
Sim. Que almoçaste?

ROGÉRIO
Não almocei. Acordei tardíssimo e tomei o pequeno-almoço. Apenas. Daí que as coisas que tinha para fazer se atrasaram. E atrasei-me. Contigo.

DIOGO
Também não almocei. Faltei às aulas porque tinha sono e também acordei tarde. Onde arrancaste a planta?

©Rogério Nuno Costa, desenho feito antes, a olhar para ele.


ROGÉRIO
A performance obriga a que eu deixe que as pessoas me arranquem o que bem entenderem. E eu delas. A performance não tem regras... Quer dizer, tem as que se criam no momento. Neste momento. Sabes quais são as regras?

DIOGO
Não me parece que as saiba totalmente. Agora não... Escrevemos, mas isso também não me parece que seja uma regra...

ROGÉRIO
Não é uma regra; deve ser uma imposição do tal momento. Ou deste sítio. Ou de ti. Ou de mim. Ou de nós. Eu tenho tendência para falar demais. Contigo não me está a apetecer. E escrever sempre me obriga a ser mais sintético...

DIOGO
O mais importante aqui foi que entraste de forma mais ou menos inesperada no meu universo pessoal. Não sei se também entrei no teu... Não esperava nada em particular da performance; fiquei surpreendido com as minhas músicas, o meu universo...

ROGÉRIO
É o teu universo. Agora também é o meu. Desculpa a intromissão... A performance é uma “invasão”, de facto. Eu quando vou de comboio até Braga, invado a vida/universo da pessoa que viaja ao meu lado, pelo menos durante aquelas 4 horas de viagem. E nem tenho que falar com ela... Tu também invadiste o meu universo. Estás aí, sentado ao pé de mim, à espera que eu acabe de escrever, e invades-me...

DIOGO
Quando se observa, invade-se. As viagens são, normalmente, tempos de espera interessantes... Não sinto que aqui me tivesses observado antropologicamente; acho que também não te observei assim.

©Diogo Leôncio, desenho feito no momento seguinte.


ROGÉRIO
Estou com frio.

DIOGO
Também eu. E perdi as minhas luvas.

ROGÉRIO
Eu não trouxe luvas. Achei que não ia ser preciso. Estou mesmo com muito frio nas mãos...

DIOGO
Se não fosse socialmente reprovável, podíamos fazer uma fogueira aqui.

ROGÉRIO
Esta performance pode ser uma reacção ao ‘socialmente reprovável’, se tu quiseres... Para mim, começa logo por isto: estar com alguém "só porque sim" é completamente reprovável socialmente, que mais não seja por se achar ser inútil...

DIOGO
Achas que estamos aqui "só porque sim"?

ROGÉRIO
“Só porque sim” não é propriamente negativo... Não acredito em justificações relativistas para tudo o que se faz, para tudo o que acontece. Não acho que deva haver uma justificação para eu estar aqui, a não ser a simples justificação de querer estar aqui. Estar aqui contigo “só porque sim” é fantástico. E suficiente. Pelo menos para mim.

DIOGO
Dessa forma, sim. Queres um cigarro?

ROGÉRIO
Eu não fumo. Mas posso fumar, se tu quiseres... Já acompanhei os cigarros de muita gente.

DIOGO
Se não fumas, não faz mal. Também não fumo então. É mais justo. Partilho do teu ‘não fumar’.

ROGÉRIO
Gosto da ‘ideia’ do cigarro. É muito cinematográfica. Por isso, acharia fantástico que fumasses. Estou a começar a gostar do frio, a habituar-me a ele...

DIOGO
Comecei a fumar por causa dos cigarros no cinema, sobretudo o da Nouvelle Vague... Tem piada. Vou fumar, então. Tremo, meio de frio, meio por estar nervoso. Os espectáculos deixam-me sempre nervoso... Mesmo no escuro da sala de cinema, fico nervoso.

ROGÉRIO
Eu tenho frio, e fome, e estou desconfortável, e um nadinha nervoso, e até com vontade de ir para casa, mas vou ficar aqui, pelo menos até onde tu quiseres que eu esteja...

DIOGO
Quando quiseres ir, podes ir. A performance parece-me que pertence a ambos, embora tenhas sido tu o culpado dela, quem a pensou... Por isso, e apesar de estarmos dependentes um do outro na performance, dou-te liberdade de escolha.

ROGÉRIO
A performance é de ambos. subscrevo.

DIOGO
Então, vais ficar ou vais embora do frio? Seja como for, tenho comida na mala, posso dar-ta.

ROGÉRIO
Não, obrigado. Posso prescindir de todas as ‘vontades’. É a impossibilidade de as saciar que faz com que seja sintético...

DIOGO
Realmente, aqui está muito frio. A esta hora, as pessoas começam a sair dos escritórios e vão para casa. As necessidades provocam a síntese, concordo. Não sei se saciadas ou por saciar...

(...)

Levanto-me num ímpeto, escrevo uma última frase num papel e deixo-o caído ao pé da árvore mais próxima. Desapareço depois.