quarta-feira, janeiro 04, 2006

no caminho.



Nada nos prepara para No Caminho. Na verdade, acreditamos que podemos facilmente enquadrar esta proposta num conjunto de espectáculos que pensam a relação entre quem faz e quem vê. Contudo, as duas partes envolvidas não são mais que dois iguais, tendo ambos quota parte de responsabilidade na convocação/realização do espectáculo. Rogério Nuno Costa porque propõe, o espectador porque sugere. Os dois criarão um espectáculo pessoal e intransmissível que tem tanto de verdade quanto verdadeira for a vida quotidiana de cada um. No Caminho é o que quisermos que seja. Isto não significa que encerre em si a história das artes performativas ou uma reflexão profunda sobre a psicologia teatral. É uma proposta que estando alicerçada numa série de premissas filosóficas, de investigação dos comportamentos e da relação ficção-realidade, se comporta como um espaço de criação livre, como uma folha em branco. Também limitada, também disponível, também finita. Também apta a ser o seu contrário. A proposta parece começar por convocar Virginia Woolf no seu livro Mrs. Dalloway: viver a vida num só dia. No Caminho dura o tempo de uma vida, a do espectáculo. Que nasce e morre com os dois participantes, duas pessoas que num certo dia, num sítio escolhido e àquela hora marcada, decidiram dedicar-se inteiramente ao outro. É, assim, o mais próximo que existe de partilha porque nos obriga a ir para lá da simples oferta, porque nos força a perceber as razões de escolha, porque nos obriga a dar e a receber. Porque, no fundo, dedicarmo-nos a alguém é partilharmos o tempo, o espaço, o inqualificável, o que fica por dizer, o que ainda não sabemos, o que o outro percebeu. Não é, por isso, isto ou aquilo, uma coisa ou outra, algo objectivo... É a vida de cada um, exposta na medida em que a quisermos expor. Depois de entrar dentro das casas dos espectadores, através de um dispositivo de oferenda-convocatória de recordações, Rogério Nuno Costa quer encontrar-se a meio do caminho, entre a casa do espectador e a sua (a terceira parte do projecto, a estrear brevemente, decorrerá em casa do performer). Contudo, não é necessário ter-se assistido à 1ª parte para se entrar em No Caminho. Afinal, os encontros são coisas do quotidiano e o teatro não é uma interrupção da vida. E também porque esta é uma proposta de observação da cidade no seu todo, ou seja, enquanto elemento de constante mudança e adaptação às pessoas que a habitam. É, pois, necessário querer pensar a importância dos lugares e a forma como nos influenciam. Portanto, não é um espectáculo de rua, mas uma proposta que pensa o exterior. O facto de se passar num espaço público prende-se com a necessidade de testar na prática o desconforto do reconhecível. Olhar de novo, se quisermos. Um pouco na linha do que António Pinto Ribeiro define no seu livro Abrigos: as cidades como a primeira cenografia, a primeira dramaturgia de imagens e volumes. Ou seja, uma cidade como work-in-progress que se desenvolve a partir dos estímulos que a própria provoca. Daí ser importante a escolha do local, da inteira responsabilidade do espectador. É que não é irrelevante. Tem que ser um com memórias pessoais, da mesma forma que quando um espectador se encontra com um actor num teatro, esse é o seu espaço sagrado. Mas isto não quer significar que ande a construir teatrinhos pela cidade de Lisboa fora. Mais do que espaços de representação, o espectáculo desenvolve relações especiais entre o sítio onde se está e a maneira como se vive esse sítio. O que remete também para a noção de site-specificityPor isso é tão importante que o espectador perceba que o espectáculo começa no momento em que o decide ir ver e que todo o seu comportamento no dia da performance vai influenciar o desenvolvimento da mesma. No Caminho é sobre a importância dos factos e a forma como manipulamos a informação. É sobretudo sobre aquilo que gostaríamos de passar ao outro, sendo que esse outro é um igual a nós. É importante sublinhar que esta não é uma proposta interactiva, uma vez que não se propõe a ganhar o espectador e muito menos a fazer deste um peão no discurso do criador. É, efectivamente, uma partilha. E, por isso está tão dependente um como o outro. Medos e receios incluídos, uma vez que serão essas dúvidas que farão evidenciar as linhas e estruturas de suporte que Rogério Nuno Costa tem preparadas, caso o espectador deseje ser um agente passivo. Mas acredita-se que os espectadores da proposta querem, também, perceber como podem ser activos num espectáculo sem que isso represente uma anulação do lugar de espectador. A inevitabilidade de uma contradição faz parte do espectáculo. E por estar prevista permite-se que a proposta encontre formas de sair dela. Esta é, por isso, uma proposta radical de teatro-no-teatro. Porque são propostas pessoais, os espectáculos tendem a um secretismo indizível que se relaciona com a maneira de receber Rogério Nuno Costa. No caso de se conhecer o criador, a proposta é não só mais exigente como pode ser uma armadilha, uma vez que se pode tornar um exercício de violência emocional exposta e de difícil digestão, já que nunca se sabe se a verdade é o que está a acontecer ou outra coisa qualquer. Se por um lado desejamos que seja, por outro sabemos que os actores são dos seres mais falsos que existem. E sendo um actor um ser mentiroso por excelência, somos levados a pensar onde estará a verdade na vida do performer, uma vez que ele reclama o espectáculo como um pedaço da sua vida quotidiana. Sabendo que representar é tornar presente e não uma realidade de segundo grau, aqui a questão da verdade/mentira só se põe se houver um envolvimento prévio com o autor ou por ignorância/insensibilidade do espectador com a questão. Por isso, este é um 'teste psicológico' ao lugar da verdade no teatro sendo que remeter para o distanciamento brechtiano é recusar uma ideia de liberdade criativa que se preste à manipulação dos factos em nome do espectáculo. Por isso, este pode ser o espectáculo mais mentiroso e falso a que alguma vez assistimos. Chama-se ilusão teatral. E a melhor ilusão é aquela que nos faz crer que se trata da vida de cada um. Tal e qual. Para quem não o conheça, No Caminho pode ser uma proposta tão fascinante quanto fascinante é improvisar sobre o desconhecido. Espectadores que não acreditam no poder da manipulação da verdade acabam, inevitavelmente, por recusar este tipo de propostas. Por isso, a cumplicidade que se pode depreender do que anteriormente foi dito não se relaciona com o facto de se conhecer ou não o performer, mas antes o que se faz com isso. E dessa manipulação depende a veracidade deste espectáculo. A questão que se coloca é, afinal, qual a veracidade de No Caminho? Será possível acreditar que este momento é inédito na vida do performer e ainda assim ele o previu e preparou? E o espectador? Que faz ele para enfrentar a "veracidade" que o performer diz ter? E qual a sua veracidade? No limite, presta-se a um conjunto de especulações que assentam numa urgência de discutir o lugar do teatro no quotidiano. Seja na sua criação, recepção ou reflexão. O desafio lançado por Rogério Nuno Costa prende-se mais com um desejo de partilha de crença do teatro e das artes performativas enquanto arte agregadora de práticas e métodos, sem descurar a ideia de que é necessária uma libertação de teorias e esquemas de pensamento em nome de uma arte que se quer viva. Ou a fazer parte dela.

Tiago Bartolomeu Costa
in Título Provisório, n.º1, 2005