quinta-feira, maio 08, 2008

lado a.

11 DE MAIO DE 2003
The name of my best friend is Clara

[sétima casa]



[do Lat. "brilhante, luzente, ilustre", Clara revela uma pessoa com forte sentido crítico e muita racionalidade. Nem sempre os outros entendem o seu auto-controle e perfeccionismo, mas é essa a sua forma de lutar pelo sucesso. Geralmente, progride muito na vida.]


I.
Cinco anos depois, traslado palavras grosseiramente do bloco de notas para aqui. Mudo algumas (poucas) coisas: pontuo, virgulo, arranjo. Ponho tudo em minúsculas, um dos meus fetiches cosméticos mais antigos. Digo, porém, que continuo a usar maiúsculas nos nomes das pessoas. Só. Os nomes das pessoas levam sempre letra grande: Clara, por exemplo: e Rogério, por exemplo. Ela tem 24 anos, faz 25 daqui a dois meses. Eu tenho 24 anos. Faço 25 daqui a um mês. Somos de Amares. É lá que estamos agora. Eu estou em casa. Está sol. Combinei lanche em casa dela; com ela e com os pais dela. Os pais chamam-se Manuela e Augusto. Vou a casa da Clara de bicicleta. É a melhor maneira de saber (sentindo na pele e no estômago) que estou na terra onde nasci; o vento é sempre gelado, os pedais levam-me sempre aos sítios mais rápido que o próprio curso dos rios (que amainam quando se encontram, por fim), e há sempre insectos que se homicidam na minha cara. Chego a casa da Clara (diz-se "a casa da Clara" ou "à casa da Clara"?) e o pai Augusto conduz-me ao lago, onde vivem uns peixes gordíssimos chamados "pimpões". Nunca tinha reparado no lago. Não conhecia os peixes da Clara, mas que são do senhor Augusto, mas que é a senhora Manuela que os alimenta. Parece que comem os ovos que as peixas põem, mas não são canibais, não se comem uns aos outros, como no sermão do padre António Vieira. Paro. Ando depois pelo jardim, vou até ao penedo, sento-me à mesa de pedra, olho as laranjeiras da casa ao lado e relembro uma chuva de estrelas falhada, anos antes, com óculos especiais e vento quente na cara. Há qualquer coisa aqui que pertence indubitavelmente ao ritual da celebração; ir a casa ("à casa"?) da Clara não é uma banalidade, é uma ritualidade: a mãe Manuela recebe-me com um lanche que ocupa o espaço quase total de uma mesa, e um sorriso com a mesma luz que se avista do cimo do penedo, e um chá revigorante que trouxe dos Açores ("porque a Clara me disse que gostavas muito de beber chá!"). E a performance começa: primeira nota no caderno das notas — estou dentro de um Vou A Tua Casa tal e qual como os sonhos que tenho o imaginam, e só agora me apercebo. Paro. Sorrio. Continuo.

II.
Temas de/da conversa: parapente no Gerês & outros desportos radicais, cidades visitadas, viagens de avião, as vistas quando vistas de cima, a ria de Aveiro e as nuvens, os Açores, o estreito de Gibraltar, Paris, Casablanca, Rabat, Londres, taras e manias associadas aos artistas num grosso modo genericamente grosseiro (por exemplo: todos os artistas vestem roupas excêntricas), a antropologia (ou será semiótica?) do vestuário — ou sobre "os que vestem o hábito para se fazerem passar por monge...”, diz a mãe Manuela —, ou os porquês da "bengala do maestro Vitorino d’Almeida não servir rigorosamente para nada a não ser para dar o ar..." (diz a Clara). Anoto: este Vou A Tua Casa é, indubitavelmente, um "espectáculo" de "teatro". Tema final: no nosso tempo é que era (Manuela vs. Augusto). Anoto: trasladar estas notas para o folder Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto [para Novembro do mesmo ano]. Continuo.

III.
A mãe da Clara sonha muitas vezes que a encarregam de dar de comer aos animais (os pimpões?), mas ela desmazela-se e acaba por deixá-los morrer à fome. Acorda sempre muito aflita. Anoto: "sonhos" [na altura queria dizer qualquer coisa como "realidades demasiado reais", "canções de embalar", "poemas visuais", "segredos", "fairy tales"]. Sei hoje que o Vou A Tua Casa é/foi tudo isso e o contrário de tudo isso também, mas ao mesmo tempo... Sim. E depois todos tentam interpretar o sonho da mãe Manuela à luz daquele outro que toda a gente tem, que é sair à rua nu e ficar cheio de vergonha. Mas o sonho da mãe Manuela é diferente, parece-me. O sonho da mãe Manuela é sobre pessoas e é sobre matar pessoas. Não é desmazelo, é purificação. Não é eliminar todas as pessoas que saem à rua despidas, ou despenteadas, ou sem sapatos; é o contrário. Recordo, conto e anoto: o meu sonho planado, em viagem, serpenteando por ruas e ruas de casas esventradas, casas de pessoas desconhecidas. pessoas despidas. E isto não são os peixes que se comem uns aos outros do padre António Vieira; isto não é intimidade, isto é exposição; isto não é criação, isto é revelação. E é a Clara que agora faz de Freud: Vou A Tua Casa é sobre despir pessoas. Tal como aquele prédio sem fachada que um dia vi, quando descia a rua do alecrim: os vestígios gráficos do que outrora foi a divisão arquitectónica dos andares e das divisões, e o trabalho do Carlos Bunga, que é isto tudo, mas em "fairy tale": e isto não é/foi inspiração, isto é/foi intuição.

IV.
Ideias: correspondência entre artistas, cartas, recortes de jornal, listas de compras, listas de coisas a fazer, outras listas de outras coisas [estamos em 2003, OK?], frases bombásticas, textos ditos como se estivessem a ser escritos (no momento em que se escrevem). Vou A Tua Casa é, indubitavelmente, uma vontade de voltar atrás.

V.
Beijos. Despedidas. Promessas de regresso. Daqui a dois meses, a Clara faz 30 anos. Daqui a um mês, eu também.