sábado, maio 10, 2008

lado a.

SANDRA ANDRADE
12 de Maio de 2003

[oitava casa]


I.
Uma casa cujos cantos conheço tão bem, não como a palma da mão (cuja quirologia, quantas vezes!, me tira o tapete do pé), mas como a história dos meus amores e desamores, por exemplo. Essa tenho-a escrita em sítios mais ou menos recônditos, em post-its colados em paredes de casas onde vou em dias de celebração. A casa da Sandra, por exemplo. Existe para mim nesta forma de inventário: todos os acontecimentos marcantes marcados a papel em sítios recônditos que se espalham desde as escadas de madeira às janelas curtas no cimo das paredes do quarto, cuja vista para ser vista exige um esforço hercúleo de ampliação do pescoço. E depois gosto sempre de pensar que estou numa casa que se encontra literalmente colada a um monumento histórico: o Arco da Porta Velha. Isto em Braga, claro, porque se fosse Paris, era o mesmo que viver numa casa que fica colada ao Arco de Triunfo. Tal e qual como a casa da minha tia Augusta, concièrge desde os anos 70, onde fico quando lá vou. E o Vou A Tua Casa é sobre isto: histórias de amor, histórias de desamor, cantigas de amor, cantigas de amigo e, claro, sobre lógicas forçadas, mais ou menos históricas, mais ou menos historiais, mais ou menos. A Sandra, essa, conta (conta-me) histórias como ninguém.

II.
Também já falei desta casa (e da Sandra) neste espectáculo. Anoto: o Vou A Tua Casa é sobre tudo o que já fiz. O Vou A Tua Casa é uma vontade de voltar atrás.

III.
A Sandra oferece-me um chupa-chupa.

IV.
Eu fico muito contente e revelo a evidência anotada após a última visita — este "espectáculo", que é de "teatro", vai acontecer nas casas das pessoas que o quiserem ver, não por uma questão de criação (ai é giro e tal...) mas por uma questão de revelação. A Sandra primeiro diz que eu sou louco. Depois diz que também quer. Depois diz que imagina que quando eu entrar nas casas dos espectadores, vou desatar a partir tudo ao pontapé. Eu digo-lhe que sim. A tudo.

V.
Saímos. Eu vou à farmácia comprar comprimidos para as minhas enxaquecas. A Sandra vai à padaria comprar pão para o nosso lanche.

VI.
Regresso. Temas de/da conversa: o sabor a Bailey's do chá; o amor; a teoria do fascínio; a lista das pessoas que já passaram por aquela casa; os pães que já vêm com queijo e fiambre dentro; os desenhos freaks na parede; as galinhas da vizinha que são (sempre) melhores que a minha; mitos; provérbios; frases bombásticas; todas as peças de teatro que eu podia representar em casa das pessoas; lista de filmes que se passam dentro de apartamentos; lista de imagens-ícone da história da performance adaptadas ao ambiente caseiro; todas as listas possíveis [estamos em 2003, vá lá!...]; e, claro, a minha história com a Sandra e a dela comigo. O Vou A Tua Casa é sobre pessoas importantes.

VII.
Enquanto a Sandra se dirige à casa-de-banho, olho de soslaio as notas que tirei: vejo ali qualquer coisa "estrutural", um corpus qualquer ainda sem órgãos, uma grelha a preencher. Baralho-me. Queria ter mais certezas. Eu gosto muito delas, de as ter, mas parece que elas, as certezas, não gostam muito de mim. A Sandra acompanha-me ao autocarro que me vai levar de regresso a Amares: o último do dia. Abraçamo-nos. Depois: “Eu depois telefono-te!”. Digo. E anoto. No caminho, prevejo nessa promessa adiada (despedida) a solução para alguns dos problemas. Meses depois, em todos os espectáculos de teatro chamados Vou A Tua Casa que fiz, fi-la sempre, essa promessa despedida, em substituição da destruição das casas ao pontapé. É certo que não a cumpri, a promessa despedida, enunciei-a apenas, e deixei 415 pessoas à minha espera para sempre. Era assim que eu gostava que todos os espectáculos, sobretudo os "de teatro", fossem. À Sandra, essa, ligo muitas vezes.