ANDRÉ GUEDES
Convidado, #5
Tal como Carlos Bunga para Lado A e Ramiro Guerreiro para Lado B, convidei o artista plástico André Guedes para conceber uma obra em diálogo com a terceira versão de Vou A Tua Casa, o Lado C. As três obras, todas com fortes ligações à arquitectura, serão publicadas no catálogo Vou A Tua Casa.
©André Guedes, Amanhã Hoje, 2006
O óbvio e o obtuso
(ideias quase soltas sobre o apagamento)
por Nuno Faria
Introdução
(ver, ler, andar, desenhar, projectar, designar, experienciar)
É uma árvore que, por antecipação e por metonímia, situa o lugar do filme "O vento levar-nos-á", de Abbas Kiarostami. Uma árvore que sinaliza o caminho que deverá tomar a viatura, figurada em plano subjectivo, que transporta dois dos protagonistas do filme para se dirigir ao local da acção propriamente dita (que finalmente se revelará estar sempre em suspenso), uma árvore que demora a chegar, de que ouvimos a descrição mas que não vemos. Com este dispositivo narrativo, Abbas Kiarostami configura-nos desde as primeiras imagens a radical experiência do filme por vir: durante as duas próximas horas aquilo que vemos (ou que pensamos ver) não corresponde ao que verdadeiramente se passa no ecrã. Em bom rigor, não chegamos propriamente a ver o filme, na expectativa de um acontecimento que jamais ocorre. A resposta talvez esteja no facto de que a obra se passa a outro nível de percepção que não o regime visual, ou talvez o realizador use as imagens como a floresta que esconde a árvore. É um filme sobre o que não vemos ou sobre a experiência de um olhar que não se faz visão. Outras árvores situam, igualmente por antecipação, num primeiro momento, e retrospectivamente, num segundo momento, a intervenção de André Guedes no Museu de Serralves. Artificialmente dispostas à entrada do Museu, colocam a questão do contexto e da atenção no específico espaço da arte. Se, por um lado, só é significante aquilo que surge enquadrado ou contextualizado como obra de arte, é também no espaço virtual do Museu que se potencia essa energia perceptiva e criativa a que se chama atenção, essa capacidade de fazer demorar o olhar sobre as coisas e de dar prioridade à fruição em detrimento do julgamento. Ora, perante a intervenção de André Guedes em Serralves, a primeira observação vem em forma de pergunta: o que vemos ao certo quando experienciamos um espaço? A pergunta presta-se a ser dissecada do ponto de vista do trabalho que o artista vem, com tenaz perseverança, desenvolvendo num silêncio mais ou menos ensurdecedor – talvez porque é sobretudo de silêncio(s) que o autor vem tratando: em primeiro lugar, é preciso explicar o que se entende por ver; em segundo lugar, o que significa experienciar um espaço; em terceiro lugar, de que tipo de espaço se fala. Ver assume uma extraordinária amplitude semântica e física no vocabulário estético de André Guedes, na exacta medida em que, no seu trabalho, o exercício da visão não se confina ao olhar, exigindo do espectador uma apurada predisposição física e mental. Ver é abertura, é estar atento e receptivo com o corpo todo ao mais ínfimo e/ou evidente elemento ou acontecimento. Da mesma forma e consequentemente se define a vivência do espaço, enquanto experiência – percorrer um espaço é um exercício activo e não reactivo. desse ponto de vista se pode compreender a ampla extensão do convite à participação do espectador nas peças de André Guedes. É peculiar no seu trabalho a forma como se designa e se explora um dado espaço. Peculiar, não tanto pelo modus faciendi, mas sobretudo pela forma como invariavelmente se processa a partir da introdução de um ínfimo diferencial (seja ele gestual, tonal ou semântico) no interior de uma concepção do espaço, a um tempo como campo expandido e como contexto específico. De facto, mais do que com espaços, o artista trabalha com contextos e frequentemente as suas intervenções não pretendem acrescentar nada a um dado contexto, antes são um meio para uma experiência mais concreta desse contexto. André Guedes não utiliza a sua formação enquanto arquitecto, a sua actividade enquanto artista ou a evidente proximidade e contacto com as artes performativas para reclamar uma posição de autoridade a priori no exercício do seu trabalho. Interessa-lhe explorar aquilo que nestas disciplinas existe de não verbalizado, de não estabelecido, de não reificado – as lacunas, as intermissões –, colocando precisamente a ênfase na experiência, ou seja, na pergunta, e já não na verificação ou na demonstração, isto é, na resposta. Desta forma, vai definindo um corpo de trabalho que não é cumulativo, mas que se constrói a partir do seu apagamento, cujo desenvolvimento não tem como desígnio construir uma imagem, estabelecer padrões estáveis de reconhecimento ou fixar uma marca autoral.
©André Guedes, Sala de Jogos, 2005
Linguagem
Sobretudo se consideradas a partir dos habituais cânones de apreciação e recepção estética, quer no campo da arte contemporânea, quer no campo das artes performativas, as intervenções de André Guedes são, frequentemente, deceptivas. Momentos de pausa, compassos de espera, imperceptíveis dissonâncias, repetições, acções muitas vezes ligadas à vivência do quotidiano, um meticuloso e amoroso trabalho sobre a aparente banalidade dos gestos do dia-a-dia. André Guedes actualiza, se é que em arte se pode falar de actualização, e prolonga algumas das pesquisas mais interessantes baseadas na ténue fronteira entre arte e vida levadas a cabo nas décadas de 60 e 70, das quais o expoente máximo é indubitavelmente Robert Filliou (vem totalmente a propósito o seu célebre aforismo “A arte é aquilo que torna a vida mais interessante do que a arte”). É também ao paradigma da desmaterialização do objecto artístico, disseminado a partir da segunda metade dos anos 60, que o autor pede de empréstimo outra característica fundadora do seu trabalho: atribuir igual relevância ao processo e ao resultado. Contudo, para além de existir numa espécie de espaço lacunar e improvável, o trabalho de André Guedes está profundamente ancorado num espaço de invisibilidade; trata-se de um trabalho intencional sobre o inconsciente visual e perceptivo. André Guedes trabalha sobre as pequenas percepções, mas fá-lo de forma enviesada, no sentido em que propõe um registo da redundância da acção e da presença do corpo e do objecto que desde logo instaura um axioma: não é na instância da visão entendida em sentido estrito que se concentra o foco da percepção, fruição e compreensão da acção. Usando como metáfora uma figura cara ao autor, digamos que não é ao nível do rosto que se passa a troca, nem tão-pouco ao nível dos sinais de inconformidade ou dissonância que se detecta o gancho que a espoleta – é dentro de um regime explicitamente vinculado ao óbvio que a troca acontece. Como se a abertura do rosto fosse uma espécie de tapume para a compreensão da sua própria complexidade, e só a partir dessa evidência se tornasse possível estabelecer uma relação. São os traços de normalidade, de justeza, de adequação que são vincados. É nos vincos, nas dobras, que se passa a acção. Não é, portanto, ao nível fenomenológico que se concretiza a relação proposta pelo artista; ela é vivida num plano interiorizado, não figurado, convocando a imaginação e a afeição enquanto ferramentas da percepção. Por essa razão, o trabalho de André Guedes opera, a um nível inconsciente, em sub-registo como um ruído branco, sobre a solidão do espectador. Desse ponto de vista aparenta-se, na sua disposição, à experiência literária ou, mais precisamente, à solitária acção de ler. Trata-se de um trabalho sobre a linguagem – pôr a nu a estrutura e o sentido da coisa.
©André Guedes, Logradouro de um edifício, 2005
Museu
Ora, em consonância com o trabalho que vem desenvolvendo em torno do apagamento, o artista abdicou de aproveitar a plataforma do museu enquanto espaço de visibilidade para investir noutras dimensões possíveis e potenciais do espaço físico, funcional e simbólico da instituição. Com Outras árvores, outro interruptor, outro fumador e uma peça preparada, exposição especificamente concebida para o Museu de Serralves, André Guedes reforça uma característica central do seu trabalho: a exploração da densidade enquanto conceito e questão propriamente material. O conceito de densidade é, como sabemos, um conceito operativo particularmente importante para a arte contemporânea, quer do ponto de vista da produção teórica, quer do ponto de vista do fazer artístico. Pedindo-o de empréstimo à física, ciência com que manteve uma relação de proximidade, foi Duchamp quem primeiro o elevou a categoria artística autónoma – lembremo-nos de Notes sur l’infra-mince, por exemplo – e na sua esteira outros artistas lhe deram a concretude com que se tornou numa questão central na arte que se faz hoje. É na exploração de um conjunto de figuras vinculadas à específica vivência e fruição do espaço da arte contemporânea – a troca, o olhar, a acção, a contemplação, a pergunta, entre outras – que reside a especificidade do presente trabalho. Não é propriamente na ocorrência ou no desenho da acção, nem ao nível do significado do gesto, que se situa a questão da intervenção de André Guedes em Serralves, mas antes ao nível de um subtil trabalho de deslocação de significação para o Museu e do seu posterior e progressivo apagamento. Nesse processo de arrastamento e de contaminação perceptiva, o espectador-actor realiza em negativo, através da materialização desse processo de perda, dessa experiência deceptiva, a significante imanência da sua presença no espaço. Cada uma das suas acções, insignificantes se pensadas noutro contexto que não no interior da instituição-museu, ganham assim um importante valor de troca, uma espécie de transcendência se revela pela banalidade. O corpo, na sua total extensão perceptiva, é uma máquina desejante aberta a todos os estímulos. Conhecer é um processo de esquecimento.
©André Guedes, Uma peça preparada, 2004
Déjà-vu
Também em forma de pergunta chega a conclusão, a queda do texto: como se torna o óbvio em inefável e o inefável em óbvio? Chegamos, começamos por não olhar para as outras árvores que se dispõem de forma bizarra em fila indiana no sentido da marcha que conduz à entrada do edifício do museu. Já no interior deste, nesse espaço previamente activado, nesse espaço já codificado, talvez venhamos a coincidir nos gestos que nos aguardam, em suspensão. ou talvez não, talvez não se dê o encontro prometido, apesar de tudo. mas é verdadeiramente já no percurso para o exterior, voltando a passar pelas árvores e a olhá-las, que o sentido da experiência verdadeiramente se realiza (la boucle est bouclée). O óbvio é a visão, essa instância primeira que teimosamente se interpõe entre o sujeito e a experiência do mundo. Por essa altura já caiu o pronome demonstrativo e indefinido. Resta-nos o nome da coisa e a coisa. Um processo de apagamento, em suma. Ver não é só nem sobretudo olhar.
[texto originalmente publicado em "André Guedes. Outras árvores, outro interruptor, outro fumador e uma peça preparada", catálogo da exposição, Porto, Fundação de Serralves, 2005. Gentilmente cedido pelo autor para publicação neste blog.]