RAMIRO GUERREIRO
convidado, #1
"Um dos nossos medos mais básicos é o da humilhação pública, receio que funciona muitas vezes como um mecanismo para o controlo do comportamento; no fundo, para a repressão do discurso e das acções absolutamente individuais. Tentamos a todo o custo, num espaço público, independentemente de este estar vigiado, não ter um comportamento aberrante, não fazer figura de tolos. Ramiro Guerreiro é um artista que executa determinadas acções em espaços muito frequentados. Nessas ocasiões, faz muitas vezes, sempre conscientemente, figura de tolo. Por exemplo, quando, em praças e ruas muito movimentadas da baixa de Lisboa se deita, inesperadamente para quem passa ou neles se senta, debaixo dos bancos públicos, em acções que duram muito pouco tempo — o suficiente para perturbar momentaneamente o funcionamento daquela rua — e que são registadas em vídeo. Ou, mais ainda, quando o faz vestido com um fato executado por si e constituído exclusivamente por panos do pó. As imagens da 'pessoa-pano-do-pó' deitando-se e arrastando-se pelo chão assume um carácter absolutamente burlesco e correspondem a uma incómoda exposição do falhanço e do inglório — quando, afinal, associamos alguém vestido com um traje integral e mais ou menos monocromático à figura do super-herói, que normalmente tem pouco contacto com o rasteiro (quase sempre voa). Digamos que Ramiro Guerreiro opera pequenos desvios, reclamando a cidade — por oposição à privatização do seu espaço público — como um terreno para micro-aventuras. É que estas intervenções, que têm tanto de derisório quanto de desarmante, mostram uma apropriação do espaço social, da propriedade, de noções utilitaristas da arquitectura e do urbanismo — questões centrais, como veremos, no trabalho deste artista. (...) Ramiro Guerreiro (...) voltou-se ainda para espaços dentro da cidade que não são reclamados, que fogem a qualquer visão utilitarista — como o espaço entre os bancos públicos e o chão. Mas também para elementos arquitectónicos de alguns edifícios lisboetas icónicos da arquitectura modernista, ou do estilo internacional, como sejam o Edifício das Águas Livres ou o Palácio da Justiça. O artista é fotografado, num projecto a que chamou Entalados, interagindo com os espaços que, nesses edifícios, correspondem a elementos com um predomínio de valores visuais e que servem para identificar de forma imediata o seu estilo — como escadas, rampas, ou determinado tipo de parapeitos (...). Aqui, o seu corpo ilustra um catálogo de posições precárias e desconfortáveis: agachado, contorcido, enrolado, de cabeça para baixo — o que se vê é uma espécie de yoga no cenário mais improvável. Todas são posições mais ou menos violentas, que ninguém suportaria durante muito tempo (...) — a mesma violência com que inúmeros escultores encaixaram figuras em alto-relevo em espaços às vezes exíguos (...), principalmente durante o Estado Novo (figuras que se conhecem justamente como "entalados"); violência que a arquitectura, embora noutro grau, sempre promove, com a sua regulação do espaço e a sua imposição de normas quanto ao habitar, conviver, trabalhar (e a arquitectura modernista assenta num programa particularmente autoritário). Na verdade, os projectos de Ramiro Guerreiro são dominados por um constante anti-autoritarismo, não só porque denunciam a capacidade de determinada fabricação dos espaços para a formatação (...), mas ainda porque o fazem expondo-o a ele mesmo ao ridículo e ao falhanço. Em 2004, faz um vídeo em que documenta a pintura do seu quarto. Nele, o artista vai registando na parede, recorrendo a fita adesiva, todas as medidas ditadas pela estrutura arquitectónica daquela divisão, bem como pela mobília. Cria assim uma grelha que servirá de base para a pintura. A intervalos, Ramiro pára de pintar e começa a dançar (...). O artista transporta agora esta pintura mural para um dos quartos da casa de Serralves, apresentando simultaneamente stills do vídeo (...) — baralhando a ideia de que existe um espaço central de produção, o estúdio, a partir do qual a arte deve ser encaminhada para outros centros (...). Tal como já acontecera em 2003, no contexto de uma exposição no espaço da Interpress (Lisboa) — A história como qualquer coisa de provisório — em que o artista também fazia alusão ao uso primitivo daquele espaço: seguindo os protocolos das pinturas públicas do período pós-revolução, executou uma pintura mural que representava o trabalho dos operários da antiga gráfica, entretanto desactivada e utilizada como espaço para exposições. Que muitos visitantes tenham visto aquele mural como um elemento do próprio edifício, ali presente desde o 25 de Abril, foi motivo de satisfação para Ramiro Guerreiro — a anti-glorificação a que me referia também pode passar (...) por um deliberado apagamento autoral. Quando lhe pedi para me mostrar o seu trabalho, constatei que ele cabia todo numa mala, de onde tirou alguns DVDs, um caderno onde desenha e vai esboçando projectos, fotografias e dispositivos que documentam algumas das suas acções (...). Nada de grandes ampliações fotográficas ou desenhos em grande escala. Ramiro Guerreiro é um artista com uma obra portátil. Alguém já escreveu que essa é "a forma ideal de possuir coisas para um vagabundo ou um exilado". »
texto: Ricardo Nicolau
in: catálogo BES Revelação 05, Fundação de Serralves
[Ramiro Guerreiro é um dos artistas plásticos convidados para colaborar no Projecto de Documentação, através de um diálogo específico com a segunda parte da trilogia (No Caminho). Mais informações brevemente.]
Fotografias cedidas e escolhidas pelo autor:
(1) & (2) — (Sem Título), Lisboa, 2004.
(3) & (4) —Acções Sem Título/A Pessoa-Pano-do-Pó, Portugal dos Pequenitos/Coimbra, 2005.
(5) & (6) —Ensaios para Entalados, Lisboa, 2004.