domingo, dezembro 10, 2006

lado c.

Rua Amadeo de Souza Cardoso, Lisboa
5 de Agosto de 2005
19:00 | 21:15



Por Carla Capeto
Por e-mail:


1.
Fui a tua casa. Cheguei dez minutos mais cedo e resolvi esperar mais 5 na rua, para fazer tempo. Detesto chegar antes do tempo. Mesmo assim, decidi não esperar esse tempo, a minha curiosidade era enorme, maior que a expectativa, e pensando nisso agora, acho que cultivei essa curiosidade deliberadamente. Para quê criar tanta expectativa? Para quê estar sempre à espera de algo novo? O sentimento de curiosidade em estado quase bruto era simplesmente fantástico. Tem tanto de fantástico como de raro, especialmente para quem, de um modo ou outro, também lida com o mundo do teatro. O que me trouxe até à tua casa? A quebra da minha rotina de espectadora. Mas que não se confunda com uma vontade do “esquisito”. No entanto, mentiria se afirmasse que não tinha qualquer expectativa em relação à performance. Influenciada, ou não, pelo que foi dito no Centro em Movimento — se é que era possível ficar indiferente — a verdade é que algumas ideias vieram à minha cabeça: uma pura e simples interacção entre performer e espectador, uma conversa entre os dois elementos, como que um reconhecimento do território (“Afinal, quem és tu?”), uma provocação lançada ao espectador, um convite, uma colaboração. Abri a porta silenciosamente e encontro o desconhecido performer estrategicamente sentado à janela, a ler.

2.
Mas era tempo de a casa se apresentar a ela própria, e de facto apresenta-se… Só que não foi a apresentação da casa, mas sim do próprio Rogério Nuno Costa. Cartazes, fotografias, livros, roteiro do metro de Londres, anúncios para um casting da MTV, o computador ligado mostrando uma linha enorme de músicas muito diferentes… Um gravador, que tem um outro nome, mas que por falha minha não consigo fixar na mente o nome sofisticado do pequeno aparelho.

3.
Antes de terminar a primeira fase deste pequeno parecer da performance Vou A Tua Casa – Lado C, não posso deixar de mencionar a loiça por lavar, os chinelos estendidos no estendal e a casa de banho com estilo masculino (terá sido pelo creme de barbear?, já não me lembro). Sem dúvida, aquela casa seria do Rogério. Decidi voltar à sala com a sensação dúbia de que seria num momento apropriado. Não sabia se deveria ter esperado mais ou se me tinha demorado demasiado. Era uma sensação muito estranha. Antes de chegar à sala, reparei numa porta fechada, imediatamente percebi que ali vivia uma outra pessoa, respirava um oxigénio diferente, como se de uma outra dimensão se tratasse. Exageros à parte, interessa dar conta do impacto que aquele breve acontecimento teve em mim, enquanto acontecia. Já mencionei o estranho que é entrar no espaço de alguém, pelo menos para mim é. Há algo que nos incomoda, não queria ser uma invasora, mas esse sentimento dissipou-se à medida que aquele espaço me englobava, se tornava meu ou eu me tornava dele. Começava a sentir um certo gozo de “bisbilhotar” a casa de uma pessoa que não conheço. Sabia que não estavas a ler. Aliás, assim que voltei a entrar na sala denunciaste isso mesmo: notei que me lançaste um rápido olhar de soslaio. “Estás a enganar-me”, pensei. Claro que sim, mas aqui o engano não é necessariamente mentir. Não podias ler, estavas sem lentes de contacto devido a uma infecção. Não me podias ver e essa foi a primeira premissa. Concordámos que manteríamos uma certa distância para guardares uma imagem enevoada de mim. Confesso que se trata de um detalhe que me incomodou, mas este incómodo foi também um desafio.

4.
Depois disto ouvi-te falar do teu percurso, da maneira como encaras a tua profissão, o teatro, a arte e falámos de um outro Rogério Costa, meu amigo. Deste-me também a oportunidade de ver uma gravação de um espectáculo teu, o ACTOR. Era difícil de acompanhar, talvez porque ache muito esquisito ver teatro em televisão. É como perceber a ausência de qualquer coisa. Há algo que as câmaras não captam. Vi, mas somente um pouco, e nesse pouco muitas coisas me chamaram a atenção. Coloco aqui as minhas notas, mas sem explicar o que são e ao que se referem:

  • Quadrado pequeno dentro de um quadrado grande.
  • Os sapatos parecem ser horríveis para os pés.
  • Equilíbrio ou desequilíbrio?
  • Até agora há uma certa fragilidade, mas também força.
  • Quadrado-círculo.
  • Qu’est-ce qu’il a dit? Ah oui, je comprends!
  • Mozart.
  • Muita luz, paragem e lentidão.
  • Um aparte: é duro ver teatro na televisão.
  • Desligo a televisão?
  • A presença do espelho é fantástica.
  • Porque é que o público tem um livro na mão?
  • Deve ser um libreto.
  • Ausência de fronteira.
  • Muita coisa acontece para além do quadrado branco.

5.
Nesta pequena dissertação acho que tenho que ser rápida, para que não se perca o essencial: passemos à parte que considero ser mais importante — a fase de construção. Aqui surge o meu segundo grande incómodo, embora seja apenas físico: o autocolante. Fazia-me transpirar e não conseguia mexer os músculos da testa. Passou-se então à fase seguinte: enquanto tudo seguia o seu ritmo quotidiano, deveria pôr a gravação e olhar nos teus olhos sempre que fizesse um recorte de algum momento que estivesse de acordo com algumas das minhas expectativas. Não sei porquê, mas parece que algo me escapou aquando do acordo das regras.

6.
Sentia-me como um espécie de fantasma, tudo corria normalmente, como se eu não estivesse ali. Eis as minhas notas:

  • Estou confusa. Não sei se compreendi, se não...
  • Água?! Sistema?!
  • Sou responsável ou não?
  • Sou ignorada.
  • Mas a minha presença é definitivamente estranha.
  • E a minha mensagem?
  • Não estou cá.
  • Azáfama.
  • E se eu contrariasse a regra da distância?
  • Vou provocar o acidente.
  • Sinto-me uma invasora, meio fantasma.
  • É esquisito.
  • Há muitos sons nesta casa.
  • Briga de casal.
  • Loiça suja.
  • Anúncio do casting da MTV:
  • Oiço deliberadamente as conversas.
  • Posso falar?
  • Não te rias!
  • Música intuitiva.

7.
Decidi, então, provocar um acidente, mas no fundo já sabia qual iria ser o resultado. Sabia que irias passar na sala do computador e eu coloquei-me lá para cruzar o teu caminho. Continuei a ser fantasma. Este foi o recorte feito. Seria a pequena performance. Repetiu-se, ajustou-se, filmou-se e concluiu-se. Poder-se-ia chamar uma pequena alegoria de um processo construtivo artístico/teatral. Foi como um pequeno apontamento do início de um projecto, a primeira linha da escrita de um texto.

8.
Como avaliar o que aconteceu? Fui-me embora com uma sensação de que fui responsável por aquele momento, tivesse ele corrido bem ou mal. E isso ocupou a minha consciência. Como saber se foi bom, interessante, uma merda, algo esquisito? Será que deverá ser pensado nesses termos? Não estarei a ser demasiado académica e a tentar colocar rótulos neste espectáculo? Como racionalizar o que aconteceu? Esta é a minha tendência. Talvez devesse fugir disso. Ainda penso na performance de 5 de Agosto e vou pensar mais durante algum tempo, pelo menos, e lembrar-me como tomei alguma consciência até de uma certa “ingenuidade” relativamente a mim, em diversos aspectos (que aqui não vale a pena nomear). Irá funcionar, durante algum tempo pelo menos, como um ponto de referência para as minhas reflexões sobre a arte, o teatro e as artes performativas em geral.

9.
A performance Vou A Tua Casa poderia até ser um desafio às leis da gravidade, permitindo que qualquer coisa fique suspensa. Não é uma referência ao que previamente se poderia esperar, mas ao que fica. É inevitável ficar sempre uma pergunta no ar, que se relaciona com a sua definição. Também é inevitável que a resposta a essa mesma pergunta tenha que ficar suspensa, por não ser possível apresentar o “concreto”. É uma vivência/experiência que não se transmite e esta é a sua principal característica. O que é que acontece em Vou A Tua Casa? Momentos, (talvez) estados de percepção, trocas de informações, demasiadas coisas para que possam simplesmente ser enumeradas, e no entanto, também há lugar para o vazio. Coisas que se captam, que se perdem, fundem ou confundem, que se absorvem e se compreendem. Nada fica ou acontece fora da nossa consciência. Tudo é transformado consoante as premissas e coordenadas pré-estabelecidas e aquelas que naturalmente surgem. O espaço é o corpo, o universo pessoal que Rogério Nuno Costa nos apresenta seria então a alma, o acidente (poderia ser o espectador?), a pulsação. A única definição que daria a Vou A Tua Casa – Lado C seria um acontecimento performático vivo, ou melhor, um organismo verdadeiramente vivo. É-me completamente impossível construir um raciocínio que assente numa análise de teor sócio-cultural, de ideologias artísticas, e nem sequer afirmar que existe uma vontade de recuperar as origens das práticas performativas. A performance respira para além da necessidade da atribuição de qualquer um destes sentidos. Digamos antes que se desenvolve através de uma decantação de um processo artístico, e ficam retidos todos os ornamentos usuais do teatro. Não encontrei um texto, uma personagem ou mesmo uma história que fundamentam a performance ou lhe sirvam de engrenagem. Talvez apenas um conjunto de expectativas. A ignição é: dois corpos, isto é, a presença de duas pessoas, o que cada um traz e dá. Põe-se de parte tudo e fica a essência: o fazer, o descobrir qualquer coisa que nos chama a atenção, o construir e o concluir. A fascinação ou a frustração é o que se guarda e o que o espectador leva para casa.

10.
Esta forma de espectáculo é retida pelo espectador/criador, que sem premeditar nada empenha nela matérias pessoais que lhe são caras. É possível que possa existir um choque e uma relação de curto-circuito entre Rogério Nuno Costa e o espectador que chega à sua casa, mas prefiro pensar nessa relação como uma relação de deslocação/acolhimento, de generosidade, quando ambos se envolvem em qualquer coisa com uma duração incerta. O que fica? O que se fez? Cada espectador, ao sair da casa de Rogério Nuno Costa dizendo “Até breve!”, levará consigo a unicidade e pessoalidade da performance. Esta é a sua principal característica. As inferências que se fazem depois de se assistir e participar na performance serão insuficientes para uma verbalização de tudo o que se vivenciou. Pensa-se muito sobre o acontecimento para o tentar definir de acordo com as lógicas a que estamos habituados. Foi um bom ou mau espectáculo? E junta-se ainda o peso de se ter um papel para que tudo pudesse acontecer. Assiste-se a um espectáculo no qual também entramos e temos a necessidade de perceber se desempenhamos bem o nosso papel ou não. O incómodo é inevitável. Saber o que aconteceu, sem se saber como explicar. A partilha desta performance com terceiros seria difícil. Mas na verdade não existe a mínima intenção de o fazer. É de quem esteve lá, não se transmite.

©Carla Capeto, 2005