ARTE (U)TÓPICA
escalas e intensidades
Cláudia Madeira
in Sinais de Cena, n.º 4, APCT, Dezembro de 2005
« (...) esta tentativa de reconciliar arte e vida, erudição e massas, tem as suas origens tanto na utopia wagneriana da "obra de arte total", como na transgressão utópica das fronteiras artísticas e na vontade de mudar o mundo anunciada pelas vanguardas do início do século XX. Sabemos que os futuristas russos chegaram a promover os seus espectáculos instantâneos no interior de fábricas; os próprios dadaístas dirigiram as suas famosas excursões artísticas a operários. E se podemos identificar a emergência desta tendência com Duchamp ou com Cage, a verdade é que só a partir da década de sessenta ganharia consistência como movimento, nomeadamente com os contributos sucessivos da arte minimalista, da arte conceptual, da performance, da body-art e, de um modo geral, da arte que designamos como sendo site-specific. Esta última tem como protagonista a figura do "artista etnógrafo", responsável por duas transformações importantes no sistema artístico: 1) o lugar da arte deixou de poder ser descrito apenas em termos espaciais, passando a incorporar uma rede discursiva de diferentes práticas e instituições, de subjectividades e comunidades alternativas; 2) o observador de arte deixou de se poder delimitar apenas em termos fenomenológicos, passando também a ser um sujeito social, definido na linguagem e marcado pela diferença (económica, étnica, sexual, etc.). A perspectiva de uma reconciliação entre arte e vida difere hoje do que propunham as vanguardas, pois assistimos à substituição do ideal da "obra de arte total" por uma utopia pós-modernista do quotidiano, parcial, feita de vizinhanças e de sobreimpressões.
(...) a arte pública configura (...) um laboratório social para a reactualização dos propósitos cívicos e universalistas originalmente reclamados pelo anfiteatro grego. No entanto, a observação empírica deste universo é reveladora do paradoxo em que alguma arte pública persiste. A um uso do conceito de arte pública não equivale sempre um público in socio. O público pode muito bem permanecer apenas in site, mantendo-se a homologia estrutural entre criação e recepção que se verificaria numa galeria, museu ou sala de espectáculos (...). Nestes casos, a ideia de uma arte pública feita para "audiências" e não para "instituições culturais" cai por terra, transformando a utopia em ideologia. (...) A arte efémera deveria incluir uma qualquer forma de documentação, capaz de lhe garantir durabilidade e autonomia como objecto de troca e exposição, bem como a capacidade de existir enquanto obra artística dentro de um sistema de criação-recepção, diferido em relação ao próprio acontecimento. Isto é tão mais verdade quanto é esse público que verdadeiramente legitima a obra enquanto arte (...). O que está em causa não é tanto o acontecimento em si, mas o tipo de relação com o social (...). O evento de arte pública poderia assim (a) apresentar um guião estruturado e pré-definido, assumindo o real como cenário ou matéria plástica para ser usada, (b) apresentar um guião aberto à interacção e integração do público, procurando fazer ligações com a realidade social, para alterar e desdobrar a realidade no sentido da arte.
(...) num registo aproximado, temos espectáculos que utilizam um dispositivo ficcional para "chegar à realidade", criando uma espécie de arte personalizada, atenta a contextos e a objectos pessoais. (...) Com os espectáculos Vou A Tua Casa, No Caminho e Lado C, Rogério Nuno Costa pretendeu criar uma trilogia teatral em forma de "mapa percurso", com o objectivo de abalar as convenções que regulam a relação entre criador e espectador. Em casa do espectador, o criador seguiu no primeiro espectáculo um guião pré-estabelecido, que depois adaptou à história e/ou espaço do seu hospedeiro, procedendo assim à "partilha de momentos" e a uma certa marcação do espaço privado. No segundo projecto, o espectador escolhia o espaço público onde pretendia que se estabelecesse o encontro-espectáculo, logo instalado em estações de comboio, parques, jardins, pontes, bares e esplanadas. Neste caso, o guião manteve-se aberto e o seu controlo foi partilhado com o espectador, numa situação quase quotidiana de encontro com um desconhecido (em conversa mantida com Rogério Nuno Costa, em Junho de 2005, este diria a propósito de No Caminho: "Cada performance foi também um pedaço da minha vida"). No terceiro espectáculo, Lado C, o guião é atribuído ao próprio espectador: este inicia e termina o espectáculo, ao entrar e sair da casa do criador, que assim vê o seu espaço e o seu quotidiano afectados pela presença do espectador [primeira fase do projecto, decorrida durante o ano de 2005, e que não corresponde à versão apresentada este ano no Festival Alkantara].
(...) pelo que venho ilustrando, torna-se claro que a capacidade de uma obra in site ter a sua realização ideal no in socio depende da ligação "com" a população e não meramente o facto de ser feita "para" a população. Uma arte pública é sempre algo mais do que uma mudança de cenário, pois esta mudança não garante, por si só, que o ímpeto público sobreviva à integração (e à anulação) paisagística, portanto, à sua desaparição crítica. A topografia pública continua a precisar da sua utopia... »