segunda-feira, abril 17, 2006

lado c.

OUTRA ACTA


Aos 29 dias do mês de Junho do ano da graça de dois mil e cinco, reuniram na cantina do Centro de Arte Moderna, em Lisboa, o autor Rogério Nuno Costa e a observadora Mónica Guerreiro, para debaterem assuntos respeitantes ao projecto "LADO C", na altura em processo ainda experimental. À frente de um almoço self-service com mini-disc/microfone e caderno de notas, o autor começa por falar do verdadeiro tsunami organizativo que invadiu a casa e a vida em doses diferenciadas, mas complementares. Uma onda de caos pluridimensional que ao invés de desnorteio, trouxe calma. Um escancarar vertiginoso de novas portas, que haveria de se espalhar pelo resto do semestre fora, com resultados discutíveis, mas claramente construtivos. Não se trata propriamente de um tempo de paragem, mas de um estado consciente de in-betweeness muito Abramoviciano. Mais do que eliminar o que não interessa (ao Rogério interessa-lhe tudo), trata-se agora de perceber o que é pernicioso. E há muitas coisas perniciosas por aí. Fez-se, portanto, a lavagem total; reciclaram-se papéis velhos; fecharam-se dossiers pendentes há quase três anos; reviram-se todas as fotografias e todos os fragmentos guardados no caixote de lixo virtual. A Mónica pergunta: "tens obra?"; Rogério responde: "não, tenho trabalho".

Falou-se depois da distinção/diferenciação que poderá eventualmente existir entre a trilogia Vou A Tua Casa (com todas as suas ramificações mais ou menos performáticas ou "performatizáveis"), e aquilo a que a Mónica chama de "espectáculos-tese" (onde se inscrevem coisas como "Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto" e "ACTOR". Na verdade, esta distinção/diferenciação não tem rigorosamente nada a ver com formas ou formatos de visionamento, mas antes com o que é que eu digo através deles. Se por um lado sei que digo exactamente a mesma coisa, por outro também sei que o digo sob duas perspectivas diferentes, ou melhor, sob duas formas diferentes de "posicionamento" ou de "colocação" do meu corpo perante o problema. Qualquer coisa como: de fora para dentro no Vou A Tua Casa; de dentro para fora nos "espectáculos-tese". Coisas centrífugas vs. coisas centrípetas. Imagem real vs. imagem espelhada. Eu no mundo vs. o mundo em mim... E por aí fora. É evidente que as coisas não são taxativas a este ponto, mas o tsunami ajudou-me a clarificar dois caminhos, que certamente irei trilhar à vez, e que espero possam um dia vir a intersectar-se.

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© Luísa Casella [Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto, 2003]

Rogério:
Corro demasiado contra o tempo. Durante o processo de preparação para um espectáculo, estou já a pensar na coerência dramatúrgica do próximo, necessariamente dependente deste. O embrião de ACTOR (2004) está no espectáculo Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto (2003); o embrião de Espectáculo de Teatro (a estrear em 2008) está no ACTOR. Apesar da dimensão pantanosa dos territórios que às vezes decido pisar, quero continuar a chafurdar nesta coisa exageradamente “projectiva”; acredito que nela subsiste uma certa singularidade na minha maneira de trabalhar, que tenciono compreender melhor, apurar, possivelmente descontruir. Quero também perceber como é que essa dimensão projectiva se inscreve num momento de “paragem cardíaca” (mas não cerebral) que é este em que me encontro agora. Não se trata de criar um programa de trabalho devidamente sustentado, mas trabalhar numa certa base de previsão. Isto é mesmo uma forma de encarar a vida tal como ela é. Estarei eu a adiar o presente numa base perigosamente sistemática? Estarei eu a desistir de me envolver completamente no trabalho que estou a realizar? A minha relação (de amor, de ódio e doutras coisas) com essa coisa do “tempo presente” está a ser devidamente trabalhada no projecto FUI. Todas as outras coisas existem sempre na virtualidade de não me estarem a satisfazer, é isso... Passo a vida a dizer a mim próprio que há-de chegar o dia em que o trabalho não irá passar da fase de projecto (o que já acontecia esboçadamente em ACTOR); isso interessa-me, mas também me interessa trilhar um caminho até aí, mesmo que depois lá chegue e depare com um muro intransponível.

Mónica:
Ou tu assumes isto como uma experiência em que as pessoas são coniventes com o projecto e cúmplices desse território, ou então terás de chegar ao ’cúmulo’ de chamar a Inspecção-Geral para vistoriar as saídas de emergência... Tem tudo a ver com a forma como as coisas são apresentadas. Isto está claramente numa situação de afunilamento: o número de espectadores vai diminuindo... Não é qualquer pessoa que se aproxima deste trabalho, e os que o fazem, fazem-no de uma forma cada vez mais informada. Para que os espectadores se apoderem da proposta, a forma como interages é obviamente meio caminho andado para que elas percebam qual é o seu "universo de transição" — donde vêm e para onde querem ir. Se isto for um problema, parece-me que ele se resolve a si próprio."

© F. Ribeiro [ACTOR, 2004]

Na recta final da reunião, Rogério revela a sua vontade em trabalhar com aquilo que distingue cada espectador (e respectivas expectativas em relação ao espectáculo), reforçando uma vez mais a sua recusa em acreditar que é possível criar um modelo de execução que seja válido para todos os espectadores. Até pode ser, mas ele não quer: “Tenho que pensar em cada pessoa individualmente. Sem a deixar insegura, mas também sem a necessidade de a entupir de conteúdos”. Mas o Rogério gostava de poder renovar o dispositivo ao sabor da continuidade dos espectáculos, até para aproveitar a longa duração das apresentações (de Maio a Dezembro): “Uma das coisas boas é eu estar permanentemente em "ensaio de possibilidades" (nomeadamente dentro dos espectáculos). Neste momento, estou a divulgar o projecto da mesma forma como divulguei os outros — imbuído da mesma dose de ambiguidade e de mistério. À partida pode ser tudo, mas como o tudo está muito próximo do nada, há coisas a fixar”.

Lisboa, 29 de Junho de 2005.