A DRAMATURGIA DO EU
NA VIDA DE TODOS OS DIAS
Mónica Guerreiro
[Análise aos espectáculos "Vou A Tua Casa", "Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto" e "ACTOR", publicada no n.º 1 da revista Sinais de Cena, em Junho de 2004 (edição da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro). O excerto seguinte pertence a "Vou A Tua Casa".]
Pode colocar-se o problema ao contrário do que tentou Goffman (que, num acesso de ladroagem bem humorada, quase-cito no meu intitulado): e se um estranho de repente lhe entrasse pela casa adentro dizendo-se actor e propondo uma outra fórmula de experiência dramática – que observasse não apenas os preceitos curriculares mas, também, procurasse levar mais longe a percepção, por parte do agora feito espectador da teatralidade latente nos objectos de que se rodeia? Invadir a intimidade, apoderar-se – ainda que por breves instantes – de parte da privacidade de um alguém que observa sabendo-se interpelado são, para Rogério Nuno Costa (n. 1978, Braga), os alicerces do projecto "Vou A Tua Casa", de que se cumpriu já a primeira de três versões (a segunda a decorrer em qualquer sítio da cidade, à escolha do espectador, e a terceira na casa do Rogério) [...].
Ir a casa dos espectadores que o solicitassem, explica Rogério [em apresentação pública que finalizou a primeira parte do projecto, no Centro em Movimento, dia 19 de Março de 2004], não era verdadeiramente o mais importante: o espectro de possibilidades aberto pelos milhares de adereços de cena diferentes, e de hipóteses de inflexão dramatúrgica a cada esquina e divisão, ofereciam um desafio sempre renovado e que se apresentava, para o espectador, como uma aventura renovada. Porque, mais que servir teatro ao domicílio, tratava-se aqui de domiciliar uma teatralidade possível, sorvida das próprias circunstâncias que o actor encontra e integra em tempo real – cita-se o título do livro de cabeceira, por exemplo, interpelando-se o espectador, e alguns seus traços característicos, como constituintes da trama dramática [entre outros traços, estes distinguiram a sessão apresentada na casa em que habitava, a 23 de Agosto de 2003]. Num revelador texto publicado na nova revista Artinsite, edição da Transforma AC, Rogério elabora em redor do conceito da site-specific art, explicando a dada altura que a sedimentação, no corpo e na percepção do performer, dos elementos constituintes de um determinado topos precede qualquer hipótese de experiência profunda das potencialidades abertas por essa intervenção. Não obstante esta premissa, o facto é que a presença de um outro, espectador, transfigura a acção, para a retirar já da fase de processo: enquanto explora o espaço em que entra pela primeira vez, Rogério-actor deixa atrás de si sinais do percurso do espectáculo em que já nos encontramos, marcações que, por um lado, evidenciam a teatralidade indisfarçável do exercício (não é por acaso que fala deste como o seu trabalho “mais teatral”) e, por outro, alteram o figurino da habitação do espectador cúmplice activo mas absolutamente desconhecedor do que se passará.
Este carácter de transformação efémera, inerente ao enunciado da performance, funciona como princípio de acção para "Vou A Tua Casa": a saída do actor coincide com o apagamento de todas as marcas da sua presença e com a mesma sensação de abandono presente em cada correr da cortina. Contudo, a reciprocidade da experiência assume aqui contornos talvez menos habituais: a imprevisibilidade está presente (ainda que em doses diferenciadas) para espectador e actor; a lógica espácio-temporal, se bem que sujeita à apropriação criativa por parte do autor/actor, é em primeira instância decisão do espectador, usufrutuário; a fragilidade relativa do papel do actor, longe da segurança do palco demarcado e preparado, potencialmente mais em posição de convidado (com o desconforto que esse papel implica) do que de condutor da acção.
Até que ponto consegue Rogério Nuno Costa, com esta criação ainda em evolução, encetar uma estratégia de subversão dos modelos convencionais de representação? Possivelmente, só o desenrolar do projecto o dirá com propriedade. Mas, para entrar na banalidade das definições – e sem que seja preciso abordar detalhes do conteúdo do espectáculo, o qual se alongava em formato de monólogo “acompanhado” acerca da vivência urbana contemporânea e de uma aventura romântica falhada, com contornos poéticos, banda sonora “de trazer por casa” e mensagens subliminares – diria por ora que a acepção de teatro como “acto da vontade” (Brook) é levado ao extremo por Rogério Nuno Costa como pretexto para a consagração do mínimo denominador comum: uma artificialidade construída e um espectador. Ou seja: um espaço comum, um querer ver e um querer ser visto. [...]