Luciana Leiderfarb
Expresso [Suplemento Actual]
6 de Setembro de 2003
Lá fora o dia está nublado e do calor intenso que assolou a cidade pouco ou nada resta. Um cigarro consome-se no cinzeiro com o fumo espesso a subir até ao tecto. Legumes que daí a horas serão o recheio de uma tarte cozem-se a lume brando na cozinha. O Canal 2 emite o Mundial de Atletismo no momento em que um atleta russo falha o salto à vara. A casa segue as suas rotações, como um motor depois de estabilizar a velocidade. De repente, um SMS quebra a inércia: “Estou atrasado, ainda no comboio.” Atrasado? Pois, o teatro. Está atrasado e vem de comboio. Na verdade, é um actor que, sozinho, vem representar a casa. Liga-se para um número e acerta-se a data. Quinta-feira às 19h, tal como combinado, Rogério Nuno Costa aparece e toca à porta como um vizinho ou familiar. Entra, de saco às costas e leitor de CD's na mão, assustando os gatos que correm a esconder-se atrás do sofá. Um primeiro golpe de vista mostra-lhe uma sala iluminada por um entardecer branco e ele posiciona-se ao lado da janela. Tira do saco lápis e papel e apressa-se a colar post-its num vidro. “Quando se vai a casa de alguém, tem de se ter um plano.” E desenha numa folha uma espécie de esquema em que se destacam as palavras “falar”, “fazer” e “mandar fazer”. Escreve também os nomes de alguns escritores e uma frase em Inglês, “I call you”. Os olhos dos presentes, quatro neste caso, convergem nele, nos seus movimentos pausados, na sombra que projecta no chão. Mal sabíamos que o actor, habilmente, estava mesmo a traçar um plano do espectáculo, que cumpriria ao pormenor, e a transformar o espaço que tão bem julgávamos conhecer.
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Fala ao mesmo tempo que desenha uma lenta geografia. Desaparece no corredor e o som de um interruptor deixa-se ouvir (como nos filmes de terror). Experimenta o terreno. Reparamos que a gata começou a aproximar-se em sinal de confiança.
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Acendemos um cigarro. Ousamos mesmo levantar-nos quando ele, carregando o seu saco qual casa portátil, se dirige à casa de banho e abre uma torneira, e ousamos avisá-lo que o lavatório não escoa com a velocidade que deveria.
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Seguimo-lo de novo, pelo corredor. Marca o território como os gatos fazem. É um intruso que escolhe um dos cantos do tapete para ler fragmentos de Adília Lopes. (...) Desloca-se pela sala, tira mais um caderno com fotos das casas que o acolheram ao longo da vida (...). Expõe a sua intimidade, mas não demora a afirmar que “é tudo mentira”, “tem que ser mentira” (...). Repara na nossa estante, escolhe dois volumes, Baudelaire e Thomas Mann. Embrulha-os. Oferece-nos os nossos próprios livros em papel azul. nota-se que o final está próximo. Ele dirá: é delicioso saber que vou ficar aqui para sempre, “saber que me vais encontrar debaixo dos tapetes”. Que a casa foi mudada por força de uma presença efémera. Que a partir deste momento existe uma memória comum. “Depois telefono-te”, despede-se de saco ao ombro. Deixa quase tudo igual ao que estava, apenas umas folhas coladas aqui e ali, nos vidros e nas paredes. Outro cigarro queima no cinzeiro. Os legumes arrefecem no mesmo sítio onde antes coziam. No canal 2 prossegue o Mundial de Atletismo. O céu continua coberto, mas anoiteceu. O actor cumpriu o seu plano. Tinha avisado: “É completamente indolor, sem efeitos secundários nem sintomas bizarros.” A casa reinicia assim as suas rotações, como um motor que estabiliza a velocidade.
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Aquilo que mais fascina Rogério Nuno Costa na cidade de Lisboa são as casas. Desde que aqui chegou que a capital lhe desperta sentimentos contraditórios. Ama-a e odeia-a.
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A ideia [do ‘Vou A Tua Casa’] começou a germinar aos poucos. Quando se tornou palpável, Rogério fez uma primeira experiência em casa de amigos. Percebeu que os espaços e as pessoas possuem uma ligação próxima. E que a intimidade pode ser trabalhada desde o exterior. Nessas sessões “preliminares”, descobriu também que as casas já conhecidas revelavam outros contornos quando vestia a pele do ‘actor’.
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Escreveu um guião que respeita – “nunca à risca”. A estrutura tem que servir para se distanciar dela. Não improvisa, adapta-se. Não interage nem provoca, reage. Se estivesse num palco, teria que se dirigir a um público anónimo que agora possui rosto, nome, endereço e toda uma rede de coisas que lhe pertencem. Assim, quebra o gelo e entra nas casas, observando primeiro o que o rodeia, e uma vez que decide por onde começar, traça um esboço “possível” de espectáculo. Possível, porque já lhe aconteceu mudar os planos, alterar a ordem, eliminar cenas. ‘Vou A Tua Casa’ é frágil, pode desmoronar-se com facilidade. Basta acontecer ter vontade de ir embora. O desafio reside em ficar, em materializar essa vontade em acções.
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A noção de geografias novas num mapa estabelecido alcança também outras áreas que não a da representação. Abarca a música, a literatura. Leva com ele livros para ler, livros que tem na sua estante. as palavras de sempre ditas nas casas de outros assumem feições insuspeitas.