sábado, dezembro 13, 2008

lado a.

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Já estou preparado. Não espero. Vou eu. Nunca me tinha apercebido. Apercebi-me agora. É urgente. Precisaram de mim mas não se mexeram. Ninguém me foi buscar. Ninguém impediu que eu fosse. Não gritaram o meu nome para que voltasse. Deixaram que acontecesse. Telefonaram-me depois. Marcaram-me uma hora. Confirmaram-me o nome de uma rua. O número de uma porta. O andar. Eu fui a tua casa. Fui sozinho. Levei na mala apenas a vontade preguiçosa de ter voltado. Isto é tudo muito literal. Eu tinha o condão de assustar uns quantos. Como deixaram que eu fosse deixei de o ter. Não é isso. Isto é tudo muito literal. É tudo uma questão de realidade. Eu vou a tua casa e tu deixas. Deixas-me pintar-te a parede. Eu a seguir fujo e tu nem dás por isso. Eu vou. Fui. E já não estou. Não doeu. Não tossiu. Não mugiu. Pronto. O resto não é para aqui chamado. Eu não trabalho assim. É tudo mentira. Mentira. Ando à procura da mentira perdida. A principal. A primordial. A mais mentirosa de todas. Deixa-me entrar. Eu não faço barulho. Não causo impressão. Tenho boa imagem. Dou-me bem com. Sou feliz. Sou alguém muito feliz. Deixa. Deixa lá. Não te preocupes porque é mentira. É a brincar. Já não me lembro do que é ir a tua casa. Lá fora está tudo em desordem. Cá dentro há mais ar. Respira-se mais. Há mais cidade cá dentro do que lá fora. E por isso é que é mentira. É tudo mentira. Tem que ser mentira. Aliás, tem que ser. Se não for, não é. Não é nada. Deixas-me entrar? É completamente indolor. Sem efeitos secundários nem sintomas bizarros em caso de sobre-dosagem. Eu não sou de agora nem pertenço a tempos que já lá vão ou a outros que estão por vir. Acabo de chegar de um qualquer sítio esfumado no próprio tempo. Entro em tua casa como se regressasse à minha terra natal depois de um quarto de século perdido em viagens. Está tudo tão diferente e simultaneamente parece que nada mudou. As casas são todas iguais. E isto é tudo mentira. Agora que entrei não vais dizer nada. Eu sou boa pessoa. Não faço mal nem a ti nem às moscas. Tenho bom ar. Boa luz. Vou deixar-te coisas como que perdidas debaixo dos tapetes. Para quando as encontrares. É delicioso saber que vou ficar aqui para sempre. Implacavelmente para sempre. É delicioso saber que me vais encontrar debaixo dos tapetes. Nos parapeitos das janelas. No pó dos móveis. Nas manchas de humidade do tecto. Nas ranhuras do soalho. E dentro dos vasos. Nas escadas. Na fachada do prédio. Nos buracos das fechaduras. E nas campainhas que oiço quando alucino, e me lembro, de ter mexido nas tuas coisas, de ter respirado o cheiro do teu quarto, de te ter visitado.

[2003]