sábado, dezembro 27, 2008

lado b.

ENCONTRO NO CAMINHO
Adamastor, Setembro 2004


ELA—Devias ter sido tu a chegar primeiro.
EU—Para quê?
ELA—Para ensaiares. Para te preparares. Para conheceres o espaço e preparares algo para mim. uma surpresa, por exemplo.
EU—Isso dá muito trabalho...
ELA—Não é para isso que te pagam?
EU—Surprise shows? É para isso que não me pagam...
ELA—Ainda assim, se o fizesses, estarias a valorizar o que fazes. Tempo é dinheiro. Trabalho também.
EU—Dinheiro é perda de tempo. Perda de dinheiro é tempo a mais.
ELA—Não há estrutura?
EU—Isso são cavernas que não desvendo...
ELA—Tens medo dos tectos negros do fim do mundo?
EU—Tenho medo de ti.
ELA—Eu sou imunda e grossa?
EU—Tu és o vazio. E eu não curto o vazio, 'tás a ver? Não curto...
ELA—'Tá-se bem...
EU—Não 'tá-se, não... Porque é que estás aqui?
ELA—Isso não te diz respeito. Quando compro um pacote de leite, não preciso de dizer à senhora do supermercado o que vou fazer com o leite. Desde que o pague...
EU—Quero o mar que é teu. Quero.
ELA—Então não faças esta peça. Faz outra. Há tantas peças para fazer. Há tantas peças por fazer.
EU—Eu não "quero fazer" esta peça. Eu "faço" esta peça. É diferente.
ELA—Tu e as ontotecnologias desse teu corpo cyber-pensante...
EU—Como é que gostavas que fosse?
ELA—Olha, agora gostava de poder levantar o cu da cadeira que estou aqui que não posso...
EU—Tu e as ergonomias desse teu corpo que pensa mais que a cabecinha e não devia... Não te vou dizer para abanares as mamas, porque já usei a piadinha num texto anterior.

[ELA põe as mamas de fora e abana-as freneticamente.]

ELA—...esta vontade que me agarra ao leme.
EU—Começas a tomar-lhe o gosto...
ELA—Qual?
EU—És tu quem conduz.
ELA—Agora.
EU—Não. Desde o início.
ELA—Puseste-me o leme nas mãos! Não tive outro remédio... De outra forma, isto afundava...
EU—E porque é que não pode afundar? Porque é que a poesia tem que ser em linha recta?
ELA — E ascendente...
EU—E ascendente!
ELA—E flutuante...
EU—E flutuante!
ELA—E vitoriosa...
EU—E vitoriosa!
ELA—Este som que me puseste a correr nos ouvidos protege-me do exterior. Foi como se me tivesses construído um teatrinho à volta da cabeça, uma coisa ontotecnologicamente arquitectónica, remota, ancestral e megalo-dramática...
EU—E umas guelras artificiais, não?
ELA—Sou alérgica ao plástico. Gosto de carne.
EU—E de pedra?
ELA—De pedra gosto. Por exemplo: podias ter espalhado pelas calçadas de Lisboa que percorro desde que saio de casa até que chego a este miradouro e te encontro aqueles papelinhos amarelos que tu tanto gostas e que colas e onde escreves aquelas mensagens de amor que tu tanto gostas e que colas e que dás de presente. Um pedi-paper geo-emocional. Em Lisboa.
EU—Não quero. Não quero. Não quero! Lamento, mas isto não existe para te "encantar". Nem de paixão, nem de medo. Isto não é o castelo da princesa, mas também não é a passagem do terror. Isto é outra coisa. Terceira via. Empate técnico. Blá blá blá...
ELA—Só falta dizer que assim sendo vais improvisar todos os dias um espectáculo diferente...
EU—Não. "Improvisação de um espectáculo diferente" são as duas coisas anteriores. Isto é outra coisa. Terceira via. Empate técnico. Blá blá blá...
ELA—Isto, isso, merecia um prémio!
EU—Também não. Isto é impremiável. E impermeável também. Essa coisa arquitectónica que eu erigi nos teus ouvidos não é um teatrinho, minha querida. É mesmo um guarda-chuva.
ELA—Mas tu és um rapaz tão sensível, tão aberto à envolvente... Não devias dizer essas coisas.
EU—Digo e faço. Não se pode só dizer, não se pode só fazer. Não se pode só dizer que se faz e fazer-se a seguir. Há que dizer, fazer, explicar porque se disse e se fez e a seguir desdizer tudo e nunca mais fazer. Parar. Queremos outra coisa! Terceira via. Empate técnico. Blá blá blá.
ELA—Devias ser mais portátil.
EU—Isso é plástico. E tu não gostas disso. Disseste-o há umas linhas atrás.
ELA—És um monstro.
EU—Mostrengo, se faz favor...
ELA—És um mostrengo!
EU—...que habito no fundo do mar.
ELA—Que habitas no fundo do mar!
EU—...e quero o mar que é teu.
ELA—E queres o mar que é meu!
EU—...ontológico sim, antológico não.
ELA—Isso não digo!
EU—Oh... diz lá... Estava a ser tão divertido...
ELA—Vou-me embora.
EU—Começou o espectáculo.