sábado, maio 17, 2008

lado a.

CLAUDINE
12 de Maio de 2003

[9.ª e última casa]


I.
Amares + bibicleta + Claudine = felicidade. Recorrência: fazer coisas juntos. O Vou A Tua Casa, em casa das pessoas, será sobre fazer coisas juntos.

II.
O Tigre é o espertalhão: consegue abrir os portões com os dentes e a língua. O Mike é o preguiçoso: só sabe comer e dormir. O Leão é o ciumento, talvez por ser o mais velho. A Claudine apresenta-me os cães como quem introduz as personagens de uma peça de teatro, no início de um texto que não se sabe onde começou (o livro não tem capa, nem contra-capa, e pode ser lido de trás para a frente e de frente para trás), e não se sabe onde vai acabar. Mas as personagens existem. Mexem-se. Estão vivas. Ladram. Mas são-me apresentadas como se vivessem na bidimensionalidade de uma folha de papel. O Vou A Tua Casa, em casa das pessoas, será sobre o achatamento das mesmas numa folha fina de sentido. Pessoas "importantes" comprimidas em folhas finas de papel. Pessoas "importantes" tão bidimensionais quanto as personagens dos ballets do Luís XIV, para que se vejam bem ao longe, e ao perto como se fossem microorganismos vistos através de uma lupa. Realidades míopes. Pessoas "importantes" que se transformam em personagens porque eu lhes colo um papel na testa com a palavra "importante" escrita em cima. Míopes.

III.
A Claudine, a mais desconcertante "não-actriz" que conheço, mostra-me que o Vou A Tua Casa, em casa das pessoas, será, indubitavelmente, um "espectáculo" de "teatro".

IV.
Quando lhe explico o que quero fazer, ela diz que o mais importante serão os cheiros das casas. Tem tanta certeza do que está a dizer, que passo automaticamente a acreditar que o resto que anotei não interessa (não vai interessar) para nada. E colo um papel na minha própria testa com a palavra "cão" escrita em cima. Agora só terei que escolher se quero ser o Tigre, o Leão ou o Mike.

V.
[Sim, a Claudine apodera-se das coisas que lhe dão como se fossem suas desde sempre, e devolve-as depois com uma marca inextinguível. Esta é a última casa que visito. Aqui se revelam (não se criam) toda a panóplia de cheiros que esta peça vai ter. O Vou A Tua Casa não é sobre "fazer amigos". O Vou A Tua Casa é sobre "ter amigos".]

VI.
Espectáculo de teatro um: a Claudine conta-me a história de uma pequena tragédia doméstica, real, mas com espectadores. Serve. Espectáculo de teatro dois: a Claudine indica-me num pequeno mapa o local exacto onde dá explicações de Francês, e serve-se dessa pequena geografia atrofiada para me dizer que gostava de ver ampliado o mapa, em papel e em ideia. Serve. Espectáculo de teatro três: a Claudine mostra-me o quarto dela, como se eu nunca lá tivesse estado: um quarto que conheço desde que a conheço, quando juntos começámos a aprender a ler: um quarto que está igual ao que era em 1995; a Claudine relembra-me o significado de cada poster, de cada elemento da sua colecção de latas, de cada frasco de perfume, de cada brinquedo antigo; eu já sabia; ela fez de conta que não, rematando: "Não gosto de mudanças”. Serve. O Vou A Tua Casa não é sobre fazer diferente; o Vou A Tua Casa é sobre ser igual. E se ele é "subversivo", é por isso.

VII.
A Claudine é a mais desconcertante "não-actriz" que eu conheço. Bis.

VIII.
A Claudine termina o seu espectáculo de teatro dedicando-me uma música que põe a correr no seu leitor de 1995: You're so pretty, the way you are... Ouvimo-la até ao fim. E no fim, oferece-me uma amêndoa. Doce. Da Páscoa. Regresso a casa com a certeza que tinha acabado de ter o meu primeiro (e único) ensaio possível para um possível espectáculo chamado Vou A Tua Casa. Um espectáculo feito por ela, para os dois. Ou um espectáculo feito pelos dois, para ela. O Vou A Tua Casa é/foi isto. Serve. Serviu.