Quando para um actor a vida e arte são uma e a mesma coisa, o espectáculo teatral transforma-se em algo que prescinde do palco tradicional concreto – bastando para existir que o actor e o espectador acordem que o espectáculo vai acontecer entre eles. Mas, e onde se encontram? Muito simples: na casa do espectador, na do actor ou no caminho que vai de uma à outra. Ou seja, no meio da rua. Vou A Tua Casa é um projecto singularíssimo, que corta com os cânones preceituais da representação teatral como forma de pensar o mundo actual. Um projecto a muitos títulos ‘terrorista’, em que o lugar e os desejos do espectador são centrais, e onde tudo pode ser levado até às últimas consequências – tal como na vida.
Uma entrevista de Sarah Adamopoulos
Como é que chega ao teatro? Que percurso pessoal tem vindo a ser esse – e com que escolhas?
É impossível dissociar a minha história pessoal do teatro que faço. A minha ligação ao teatro e às artes performativas deve-se a uma série de circunstâncias, e não a escolhas predefinidas à partida. O meu percurso tem-se pautado por vários acasos. Nunca tomei nenhuma grande decisão de fundo. Não reconheço, no meu trajecto artístico, nenhum momento em que tenha decidido que ia fazer isto ou aquilo. Fui chegando às coisas por acaso, e fui-me apercebendo que essa minha maneira de estar no teatro era interessante, e discursiva — e que essa minha atitude, quase terrorista, chegava por vezes a certos lugares sem ter permissão para tal. E isso acabou por ditar muitas das coisas que eu gosto de dizer nos meus espectáculos — os meus statements, e consequentemente a forma que os espectáculos acabam por tomar. Vim parar a Lisboa porque não tinha feito o exame certo para poder ingressar o curso de Comunicação Social em Braga. E foi durante o tempo do curso que comecei a fazer teatro amador, no grupo do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Começou sendo actor?
Sim. Nos primeiros tempos, esse grupo não fazia grande coisa, não havia dinheiro para nada, as pessoas faltavam… No 3.º ano de curso, porém, começámos a trabalhar com o actor João Cabral, com quem fizemos em 1999 uma peça muito experimental baseada em poemas do Mário Cesariny. No ano seguinte estreámos outra peça, com textos escritos pelos actores. Foram os meus primeiros espectáculos como actor, mas também como co-criador. A minha chegada ao teatro amador não começou da maneira mais tradicional, portanto. Aquilo que é comum acontecer é fazer-se os textos clássicos, as personagens, etc. Eu entrei no teatro pela porta de saída (risos). Comecei logo pela desconstrução, pelo distanciamento, pelo experimentalismo, pela interdisciplinaridade, pela performance. Eu estava a acabar o curso, e nunca houve até 2000 nenhuma vontade expressa de continuar a fazer teatro. Acabei o curso, e fiz o que toda a gente faz — enviar currículos para jornais, televisões, rádios...
Ia ser jornalista.
A única coisa que eu sabia, e mesmo assim não tinha a certeza, é que queria fazer algo próximo do jornalismo de investigação em torno de questões culturais. Mas nada disso aconteceu. A minha “profissionalização” no teatro foi feita aos tropeções. Em 2000, eu não fazia ideia de nada, não sabia quem eram as pessoas que faziam teatro em Portugal, não conhecia os nomes, ia muito pouco ao teatro. No grupo da faculdade, trabalhei com a Paula Sá Nogueira, a Mariana Sá Nogueira e o Marcello Urgeghe, do Cão Solteiro. Foram uma influência importantíssima. As pessoas com quem passei a manter contacto daí para a frente não tinham nada a ver com o teatro que eu tinha visto até então. A Mónica Calle, a Lúcia Sigalho, o João Garcia Miguel... Eu tinha uma ingenuidade enorme em relação a tudo, e fui-me aproveitando disso. Percebi que não valia muito a pena procurar mais, se o que estava a acontecer à minha volta, por afinidades diversas, era tão interessante. Preenchia-me em todos os sentidos estéticos e filosóficos. Depois de acabar o curso, em 2000, fui parar, também por acaso (ou melhor, por "arrasto"), a uma audição da Lúcia Sigalho. Eu não sabia quem era a Lúcia, nunca tinha visto um único espectáculo dela. Quando cheguei, fiquei cheio de medo porque reconheci muitos "profissionais" muito mais experientes que eu. Mas fiz a audição, e fiquei. Percebi imediatamente que era aquilo que eu queria fazer. As coisas que a Lúcia fazia nessa altura eram incríveis. Era um teatro muito físico, até um bocado extremista na exploração dos limites do corpo e da voz. Muito a-narrativo, não-linear, caótico, profundamente pós-moderno. Na altura, não havia mais ninguém a fazer aquilo. Era uma coisa do aqui e do agora, muito assente na busca de uma verdade, de uma presença em palco verdadeira, real.
E em permanente partilha com os espectadores.
Exactamente. Promovia uma convocação permanente do olhar do espectador para dentro do próprio espectáculo. Acabei por não fazer esse espectáculo (Dedicatórias) enquanto actor, mas fiz assistência geral, nomeadamente à encenação. Foi a minha escola. Aprendi tudo o que precisava aprender em 3 meses de trabalho. Tenho por isso um respeito profundo pelo trabalho da Lúcia, e pelas coisas que ela me deu. Fiz depois mais três espectáculos com ela, já como actor, o último dos quais (Capricho!) em 2003.
O teatro da Lúcia Sigalho faz constantemente essa ponte com a vida, ou assenta mesmo nisso, na vida, no que acontece nos dias das pessoas.
Ainda hoje faço muitas vezes esse exercício de tentar chegar ao teatro sem ser através do "teatro" — tentar não escolher textos que tenham em si uma carga teatral, tentar chegar a uma teatralidade qualquer que não se inspire nos cânones tradicionais do teatro. Os cânones da representação teatral não me interessam muito, inspiro-me mais na vida, no quotidiano, no meu passado…
Na sua própria vida – que talvez seja o que contemporaneamente faz sentido…
É o que eu conheço melhor, é o que está mais próximo de mim. Mas às vezes apetece-me ser mais investigador, e interesso-me por aquilo que os outros estão a fazer. Mas depois acho tudo muito desinteressante... É muito mais produtivo quando me deixo “perder” por coisas que à partida não parecem informantes para os meus espectáculos.
Coisas como por exemplo o quê?
As minhas mudanças de casa, por exemplo. E isso acaba por ser tanto ou mais importante do que os conceitos e as teorias e as coisas que leio. Faço um esforço permanente por me deixar surpreender pela vida, ao ponto de ser ela a mudar o curso do trabalho. O sentido mais clássico do trabalho do actor ou do encenador é o oposto disso — "dar a vida" pelo teatro, o grande actor que é capaz de deixar tudo pela "profissão"... Faço o jogo ao contrário, ou seja, deixo que seja a vida a influenciar, e por vezes a decidir. Há um projecto que lancei em paralelo com o Vou A Tua Casa que se chama FUI, que é paradigmático disso mesmo. Fiz 7 experiências com esse projecto, onde a abordagem foi a de perceber de que forma eu podia anular-me como criador, como ser pensante que é capaz de concretizar ideias, ao ponto de deixar que a simples vontade que um espectáculo aconteça seja suficiente para que ele aconteça. De facto. Decido por exemplo que vou fazer um espectáculo na Casa Conveniente, e acordo com a Mónica Calle que dia 17 é a estreia do espectáculo. Eu não vou nunca pensar no que vou fazer nesse espectáculo. Durante o tempo que tenho para o preparar, as coisas vão inevitavelmente acontecer. Eu vou viver, há coisas que vão acontecer na minha vida durante esse tempo, mesmo que eu fique em casa. E se eu ficar em casa porque adoeci, por exemplo, se calhar é isso que vou devolver no dia do espectáculo. E pergunto: de que maneira é que isto continua a ser teatro? – teatro enquanto reflexão sobre tempo, sobre espaço, sobre a tríade Peter Brookiana actor/espectador/contexto comum? E nessa medida, o que acontece durante o espectáculo acaba por ser o menos relevante, porque o que interessa é essa troca entre duas entidades e o que as une num determinado espaço e tempo. Ou seja, você acorda comigo que eu vou fazer um espectáculo para si. E por isso é que o que acontece a seguir é um espectáculo — e apenas por isso. Isto é válido em todas as situações performativas, claro; no contexto do meu trabalho, é mesmo só isto. Não há mais nada.
O Vou A Tua Casa é um projecto teatral terrorista?
O Vou A Tua Casa foi a minha primeira grande investida num território que quero continuar a pesquisar, a explorar, e sobre o qual quero também continuar a teorizar. Aprendi que a teorização traz com ela uma prática, tem uma forma. Eu não gosto de começar pela forma. Basta que haja esse compromisso de que falava há pouco. Se eu perguntar a estas pessoas que estão aqui neste restaurante se isto é um espectáculo de teatro, elas vão dizer que não. Mas se nós acordarmos que é, então é. Pelo menos para nós (risos). Luto por uma abordagem à arte em geral que seja muito pouco – ou mesmo nada – formalista. Infelizmente, a maior parte dos críticos, dos investigadores e de muitos teóricos, continua a procurar isso no teatro. A espectacularidade formal é mais importante que a ideia ou o conceito. E mesmo quando as obras já nem sequer oferecem isso, eles continuam a validar o que vêem pela película formal...
Por vezes dir-se-ia que nem os próprios textos contam. Como se uma peça não pudesse existir pelo texto. Investe-se por vezes absurdamente nos cenários, e nas cabeças de cartaz, e nos efeitos especiais…
Note que não encontro na arte qualquer sentido social ou político à partida. Explicando-me melhor: falar-se em arte como algo do regime do social e do político é para mim um dado adquirido. Não existe arte mais ou menos social, mais ou menos política, a menos que nos aproximemos dela tematicamente, o que me parece muito redutor, para não dizer leviano. A arte é uma forma de pensar o mundo que deve por isso ser autónoma, tal como o pensamento filosófico, o matemático, o científico, etc... Quando a arte começa a ser outras coisas, quando quer concretamente fazer intervenção política, ou quando se institucionaliza, por exemplo, deixa de ser interessante. O Vou A Tua Casa começou por ser uma provocação, sim, mas não havia nisso nenhum sentido político. Quando em 2003 eu decido fazer espectáculos nas casas das pessoas, isso não correspondeu a uma vontade minha de ir contra a convenção. E também não decidi fazer assim por me faltarem os meios para fazer de outra forma, ou por ser para mim difícil ser programado nas salas de teatro convencionais. Há pessoas que acham que eu faço isto porque tenho que me "desenrascar" (risos). Não tem nada a ver com isso... Trata-se de um pressuposto especificamente artístico, logo conceptual. Eu até gosto dos palcos convencionais... (risos)
É também a expressão de uma insatisfação?
Claro. Uma insatisfação em relação ao que eu fazia antes disso. Estava farto de ser "actor". Queria muito convocar o espectador para além do que já estava a fazer a Lúcia Sigalho, entre outros. Essa convocação era induzida, de forma artificial, mas não era levada até uma consequência qualquer que eu queria experimentar.
Uma procura de últimas consequências?
Também. Se eu vou fazer isto para si, então por que é que não nos encontramos e falamos sobre o assunto? Se é tão importante eu saber que você está aqui comigo, então vamos tornar isso realmente importante. E nesse caso eu quero mesmo conhecê-la! Fazia-me imensa confusão não saber quem eram as pessoas que estavam na sala a ver o espectáculo. Eu sei, porque também sou espectador, que há pessoas que estão ali sentadas mas cheias de vontade de ir embora, outras que estão cheias de vontade de saltar para cima do palco porque estão a adorar o que está a acontecer, outras com dores de cabeça, outras a pensar noutras coisas... E tudo isto é para mim muito mais interessante do que o próprio espectáculo! Eu quero saber de que forma é que as expectativas das pessoas podem mudar o espectáculo. E eu queria saber estas coisas, pesquisando sobre elas, mas também testando, quase em jeito de laboratório científico. O Vou A Tua Casa nasce dessa minha vontade de estar o mais perto possível das pessoas — mesmo que isso implique uma proximidade física e real, e a invasão da sua intimidade/privacidade. E porque se trata de uma experiência com muitos riscos e erros associados, o espectador transforma-se aqui numa espécie de cobaia, embora consciente que é "cobaia" (risos). É evidente que aqui a questão da "interactividade" já nem sequer se coloca, porque se trata de um trabalho de total participação/colaboração. Não é só aceitar que o espectador contribua para aquele momento, é pôr o espectador a participar da minha proposta, desde a sua concepção meramente teórica à sua finalização tornada pública. E por isso é que eu digo que o Vou A Tua Casa não começa quando eu entro em casa das pessoas. O espectáculo começa muito antes disso, quando o espectador recebe a ideia e decide fazer parte (telefona, manda e-mail, etc.). A partir desse instante em que a pessoa toma conhecimento e decide que quer fazer, inicia-se um processo. O que está aqui em causa é uma ideia de compromisso: eu apresento-lhe uma ideia e você deixa-se atravessar por ela, e como espectadora resolve-a dentro de si.
Quantas pessoas estavam na casa do espectador-anfitrião do Vou A Tua Casa e quanto custava?
Quando comecei o projecto, tentei impor coisas que fazem parte de uma certa convenção teatral: a bilheteira, por exemplo. Chegou a haver alguém que tocava à campainha, entrava antes de mim, tratava dos bilhetes... Essa pessoa depois ia-se embora e eu entrava. Foi uma profunda ingenuidade minha, que comprometeu uma boa dezena de espectáculos. Quando comecei a aperceber-me que essas coisas eram contraditórias em relação ao projecto, fui eliminando-as. Quando começo a fazer a parte do projecto que acontece num espaço público (No Caminho), já não há bilheteira. E é aqui, em 2005, que o projecto começa a confrontar-se com a sua dimensão estritamente política. Como é que eu sustentava, sem bilheteira, um espectáculo que não tinha quaisquer apoios?
Como?
Eu não podia cobrar bilhetes ao espectador, não fazia sentido nenhum... Se o plano era o da indissociação plena entre a arte e a vida, se eu pretendia promover um encontro "real", eu tinha que poder resolver isso de outra forma, pois eu não cobro bilhetes aos amigos com quem me encontro para tomar café! (risos)
Mas e como resolveu a parte prática (gerar receitas)?
Tive que esperar até ter apoios (do Estado, de organismos privados, de Festivais...), que acabaram por chegar, em 2006. Seja como for, a vertente filosófica não se perdeu, intensificou-se. Quando avancei para a terceira versão do projecto (Lado C), na minha própria casa, eram os espectadores que decidiam o que queriam fazer, e de que forma queriam existir enquanto espectadores, logo, também, se queriam ou não pagar.
E o que é que as pessoas queriam ver, e ser?
As pessoas esperam quase sempre duas coisas deste espectáculo. A primeira é essa ideia mais clássica da interacção, que como já disse me desinteressa bastante. Não quero que o espectador seja apenas aquele que dá uma deixa, ou que segura no meu casaco. O Vou A Tua Casa é uma experiência, e exige do espectador que este decida o que quer que eu faça para ele. Há depois uma outra coisa que interessa muito as pessoas, que é serem tocadas emocionalmente (risos). Nem sempre acontece... Porque também não é coisa que me interesse muito. O projecto dá-lhes isso, às vezes, ainda que de forma não necessariamente premeditada, diria que subliminar. O que o Vou A Tua Casa propõe está muito próximo de uma vivência que não é, de todo, a que tradicionalmente acontece quando vamos ao teatro. Há um momento no Lado C em que troco contactos com as pessoas. É evidente que também há pessoas que acabam de ver o espectáculo e não querem mais pensar nele, ou manter contacto comigo. Mas há uma grande percentagem de espectadores que querem manter esse contacto comigo. Querem ser meus amigos (risos). Isto é possível em qualquer contexto teatral (mais ou menos convencional), claro, mas no Vou A Tua Casa essa relação não é uma mera casualidade; ela é, na verdade, a raison d'être de toda a experiência. O espectáculo só existe porque existe uma relação.
Disse-me uma vez que houve pessoas que choraram. As pessoas que choram fazem-no porque se sentem tocadas por algo que é dito, ou feito, ou porque você as choca?
Não creio ter alguma vez chocado as pessoas. Aquilo que as pessoas mais referem é a singularidade do momento. É aquilo estar a acontecer para elas. É ser um presente que está a ser-lhes dado, só para elas. Amanhã, noutra casa, será completamente diferente.
As pessoas são sensíveis a essa dádiva.
Bastante. No início eu não tinha consciência disso. Hoje, passados três anos, há pessoas que ainda têm nas paredes papéis que eu lá deixei, no sítio exacto onde os deixei.
Tem na memória algum momento decisivo, ou algo que tenha sido dito durante um desses espectáculos em casa das pessoas?
Um dos momentos mais incríveis do Vou A Tua Casa foi quando eu me apaixonei por uma pessoa durante o espectáculo. Vivemos juntos 2 anos! (risos) Mas, à partida, o projecto não é uma coisa vertiginosa, não é algo que eu faça para "sentir coisas". É até um objecto muito técnico! Um projecto que começou por consolidar a minha renúncia ao virtuosismo do actor (colocar bem a voz, ter a fisicalidade certa, a presença certa, a interioridade certa, o ritmo, a personagem...), acabou curiosamente por me devolver um modus operandi que me parece em si "virtuoso", mas a um outro nível muito próximo de algo que podemos apelidar de "grau zero da interpretação". Repare: a pior coisa que se pode pedir a um actor é que não faça nada. Ou que esteja ali como quando está em casa. Ou que fale com o espectador como fala com os amigos quando está no café. Eu desenvolvi um seminário na ESAD [Escola Superior de Artes e Design], nas Caldas da Rainha, com os alunos do curso de Teatro, em que a premissa era justamente essa: não fazer nada, não provocar nada, não antecipar nada, não pensar nada, apenas estar no palco e esperar que o tempo tome conta do "recado"... (risos). Foi impossível! Passados 5 minutos estavam a fazer tudo, já inundavam aquele espaço de artificialismos que não faziam parte original dele. Já tinham personagens, já tinham nomes para elas, já estavam em acção/enredo. Todos nós, actores e não só, estamos programados para fazer, para ser uma coisa qualquer, para fazer o papel de. Há um pânico da realidade. O Vou A Tua Casa não só abraça esse pânico, sem medos, como se propõe a concretizar um dispositivo muito mais "revelatório", e menos de criação. Pode parecer que não, mas isto também impõe uma qualquer tecnicidade. E não é nada fácil de fazer! (risos)
Mas as pessoas não procuram no teatro a espectacularidade do artifício? Os figurinos, as luzes, os efeitos, a fantasia? Não é nisso também que tradicionalmente a crítica se sustenta?
Talvez. Mas não procuram (ou não devem procurar) só isso... Os críticos em Portugal são na grande generalidade pessoas que tinham uma ou outra afinidade com o universo artístico (porque foram actores, ou porque foram jornalistas na área da cultura). E essas pessoas limitam-se a fazer jornalismo de opinião. Para mim um crítico é alguém que deve pensar os espectáculos criativamente. A crítica não pode ser um serviço. A responsabilidade de um crítico é enorme, mas isso não faz do seu métier um serviço. O mal da crítica em Portugal é ser lamentavelmente infértil. Não produz pensamento. Justamente porque resiste a ser pessoal. Eu não vejo nenhum problema em sermos "pessoais" e "subjectivos" e "parciais" quando nos propomos a analisar um espectáculo (risos). O contrário é utópico e contra-natura. Não é sequer possível. Qualquer tentativa nesse sentido é frustrada.
O teatro pode ou não ser uma exposição de ideias?
Só pode ser. O teatro é isso. Toda a arte, aliás, é uma exposição de ideias. É também um acto comunicacional, logo, uma partilha.
Qual é o lugar do texto no seu teatro?
O teatro é uma coisa, o texto dramático é outra. Continuar a querer fazer coincidir essas duas coisas é para mim doentio (mais um dos problemas graves da crítica em Portugal, por exemplo). Nas minhas criações, o texto tem importância idêntica à de qualquer outro elemento que convoco para a materialização da ideia que quero comunicar. Não é mais nem menos importante que as roupas que vou vestir, a música que vou usar, ou o texto da folha de sala que vou entregar às pessoas antes de entrarem, por exemplo...
Mas é ou não sensível a um bom texto para teatro?
Nem por isso... Não sei o que é isso: um "bom texto para teatro". Sei o que pode ser um bom espectáculo de teatro feito a partir de um texto. Lá está! (risos) Mas repare: eu uso textos! Fiz em Braga um espectáculo chamado A Leitura Encenada É Um Género Que Não Faz O Meu Género. Fiz outro, em Lisboa, no Taborda, chamado Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto. E fiz depois no CCB um outro chamado ACTOR. Todos estes espectáculos têm como premissa a minha relação pessoal com um texto. Mas lá está, o texto é só um utensílio, entre dezenas de outros. Não lhe dou essa centralidade num projecto meu.
Antevisões para o seu teatro, e também para o dos outros.
Em relação ao meu trabalho, penso que a dimensão teórica e de reflexão está a impor-se cada vez mais, e é seguramente um caminho. Ou seja, pensar sobre e documentar os meus projectos, comprometer-me ainda mais com o meu tempo, conhecer outros artistas, dar aulas (que adoro!), afunilar o meu discurso, mas permitir ao mesmo tempo que ele se perca e conheça outros pontos de fuga. Adoro a bipolaridade discursiva! (risos) Continuar a acreditar no poder do efémero, claro... Adoro a fragmentação, adoro a rapidez, adoro o excesso de informação. Adoro a renúncia, adoro a apologia, adoro a resistência. E adoro a passagem do tempo. Adoro rir-me das coisas que fazia há 3 anos atrás...
Nesse sentido, o seu trabalho é uma espécie de celebração, senão mesmo de anunciação do espírito do tempo.
E esse espírito diz-me que não faz sentido acreditar-se que ainda é possível inventar formas novas! Quero continuar a defender uma arte enquanto conceito, que só é operacional porque se permite a ser pensada e re-pensada ad nauseum e ad aeternum...
Nunca o acusaram de fazer algo demasiado auto-centrado? Ou de se expor demasiado? Ou de usar os espectadores para as suas experiências (Rogério e os seus ratos brancos)?
Isso tudo, e mais coisas más... (risos)
Qual poderá ser o seu lugar no espaço teatral português? Quais são objectivamente as suas aspirações para o dia de amanhã?
Não gosto muito de pensar nas coisas que faço sob essa perspectiva... Não sei que lugar é que ocupo, se é que de facto ocupo algum lugar... Se calhar só ocupo tempo! (risos) É isso, ocupo o tempo teatral português! (risos) Quanto a aspirações... Bom, estou muito empenhado em iniciar o meu próximo projecto, que se chama A Oportunidade do Espectador, uma continuação lógica, também em formato trilogia, do Vou A Tua Casa.
Que projecto é esse?
Convidei algumas pessoas, escolhidas durante workshops que fiz sobre o Vou A Tua Casa, para fazerem o projecto como elas achavam que podia ser feito. Se fosse o espectador a fazer, como seria? Várias pessoas de várias áreas do pensamento (filosofia, curadoria, história da arte, etc.) são agora observadores e teóricos convidados. O objectivo é reunir um conjunto de possibilidades performativas da inteira e exclusiva responsabilidade dos espectadores. É uma oportunidade para as pessoas, que já foram espectadoras do Vou A Tua Casa, colocarem as suas questões.
Até onde acha que é possível levar um projecto tão inovador e complexo como o seu, num país em que o teatro ainda é maioritariamente encarado como uma exibição de virtuosismos formais?
Não sei. O meu trabalho ainda é visto como uma coisa alienígena, e acho que será assim sempre. (risos) Há um grande preconceito, mas eu até aceito que ele faça sentido. Já aprendi a lidar com ele, a tirar partido dele... Eu não procuro ser original, ou singular. Tratam-se de assunções que morreram com as primeiras vanguardas do século XX. Há 100 anos! Não sei o que são, mesmo... Eu não ando à procura da next big thing, que é infelizmente o que se faz muito: procurar o actor do momento, o melhor dramaturgo do momento… Não sei se o meu projecto é inovador, mas sei que está neste momento a encaminhar-se para um modus operandi que é cada vez mais especializado, intelectualizado, logo, críptico. Não sei se se aguentará muito tempo em Portugal...
Não se sente por vezes muito incompreendido? Muito só nessa sua abordagem ao teatro?
Não. Sinto-me até muito acompanhado, pelas pessoas que vão ver o meu trabalho, pelos artistas (alguns, poucos) que me apoiam... Não me sinto de todo sozinho. Mas sinto outras coisas menos boas, claro... O meu trabalho é muito difícil de programar, por exemplo. Não respeita a grande maioria dos convencionalismos necessários para ser apresentado num Festival. E isso às vezes deixa-me frustrado, não porque seja para mim importante ir aos Festivais, ou fazer parte do so-called "circuito", mas porque há contextos que são necessários e vitais para a manutenção de um projecto na sua relação com a comunidade. Não consigo fazer tudo sozinho, é impossível. Mas quando o espectáculo e a vida coincidem, o fracasso é sempre uma possibilidade. O fracasso é tão importante como o sucesso. E isto é venenoso aos olhos de um programador... O fracasso não é programável.
[Lisboa, 2007]