PROLONGAMENTO
por Susana Chiocca
Tudo é de extrema importância, a pessoa, o autor, o inter-actor (1), o espaço envolvente, o lugar, o local, o macro e o ínfimo; o que se experiencia, o que se sente e atende e o que se pensa e sente depois do acontecimento (2). Tudo começa antes. Tudo começa no encontro com um anúncio num jornal, ou com um amigo que nos informa — a decisão de telefonar, a marcação, a recepção do autor em nossa casa (Lado A). Todas as questões de comportamento social, perante a recepção de um desconhecido em nossa casa, são pensadas: quais as condições ideais para a mesma, o que manter, o que mudar, de que forma actuar?; ou algo tão simples como o primeiro contacto: fará sentido convidá-lo para tomar alguma coisa, ou simplesmente esperar e observar o que nos traz? Trata-se de um desconhecido especial, alguém que se predispõe a deslocar-se a nossa casa e a viver um momento específico connosco, numa espécie de exclusividade e concomitância. Tudo se transfere quando somos recebidos em casa do autor (Lado C), pelo que surgem questões muito semelhantes no que se refere à actuação: como estar, como falar, como observar, como comer? No fundo, como ser? O facto de se telefonar a marcar um espectáculo em nossa casa, ou “a caminho” (Lado B) significa já um desafio. Ambos, actor e inter-actor, estão dispostos a saírem do seu lugar confortável, convencional e protegido, para conceberem algo em comum (3). Ambos desejam que o encontro ocorra num outro espaço à margem do palco distanciado e de barreiras impostas. Com o objectivo de criar um novo palco, um palco ideal como “espaço de troca que fica entre o meu corpo e o teu” (4). Afinal, o aqui e agora existe no encontro de possibilidades desconhecidas, na aproximação e transpiração das nossas peles. Estar, ver, observar, tocar, ampliar, significar um ínfimo, um momento; no meio da multidão, num jardim, numa praça, numa esplanada, sentados, ou pelo caminho (5). São aproximações que relembram as experiências de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, que foram ao longo da sua actividade artística intensificando a tão requerida integração e participação do espectador. Clark passa particularmente de uma progressiva e quase anulação do objecto, através da participação dialogante entre dois corpos (por exemplo, o Diálogo de Mãos, de 1966), para uma criação e participação de um grupo, de um colectivo (6), como os trabalhos Arquitecturas Biológicas I e II e Estruturas Vivas (ambos de 1969) ou Baba Antropofágica (1973) — “(…) a participação é cada vez maior. Não existe mais o objecto para expressar qualquer conceito, mas sim para o espectador atingir cada vez mais profundamente o seu próprio eu” (7). O objecto passa a ser o próprio corpo, as próprias vivências, tal como Rogério Nuno Costa opera no seu trabalho. Um corpo que é diferente de outros corpos, o que implica sentidos diferentes, respostas também diversas, interacções e palpações próprias. Reflectidas na forma como se recebe, na especificidade do lugar que envolve os dois corpos, o som/ruído, a vestimenta que os encobre, o que se partilha; algo particular e irrepetível. Dois corpos em verdadeira inter-acção, os seus papéis podem inter-mutar-se, assim como a própria fruição: ambos podem guiar o encontro e o diálogo vai-se estabelecendo num certo equilíbrio. Tudo fica em aberto, tudo continua. O contacto perde-se no tempo, pelas ilimitadas possibilidades de abertura e desenvolvimento do encontro, prolongando-se até o nosso desejo cessar, se é que nos apercebemos desse fim.
Susana Chiocca, 32 anos
[artista e investigadora em arte contemporânea]
NOTAS:
(1) Pela necessidade de encontrar um conceito que melhor se adeque às proposições artísticas contemporâneas e, neste caso específico, das artes performativas, e numa relação directa com os pressupostos de Lygia Clark com a questão do espectador-actor (ou do participante de Hélio Oiticica), surge o conceito de inter-actor. Inter-actor porque inter-age; porque é um inter-mediário entre a performance e o performer; porque torna possível aquilo que vê acontecer e que faz acontecer; porque lê, absorve, filtra, reincorpora e age, move e faz mover esse fluxo, essa transferência concedida originalmente pelo autor.
(2) “Para mim, é muito mais importante o que o público experiencia antes de chegar, as expectativas que cria, a ansiedade que tem, e também aquilo que experiencia depois de existir, as coisas que vai pensar a seguir, a maneira como vai falar do espectáculo com outras pessoas”, em entrevista realizada a Rogério Nuno Costa (Julho de 2006).
(3) Como refere José A. Sanchez, “Para que el espectador entre en el juego, es preciso que, como los(as) propios(as) creadores(as), rompa su equilibrio”, em Pensando con el cuerpo, Desviaciones, p. 27.
(4) Em entrevista realizada a Rogério Nuno Costa (Julho de 2006).
(5) Novos lugares: o trabalho de Rogério Nuno Costa questiona o lugar de apresentação, acabando por sair à rua. Será então necessário repensar as características dos variados espaços de apresentação (salas, auditórios, galerias), sobretudo quando se tratam de trabalhos que fogem à tradicional relação com o público – a plateia à italiana. O seu carácter convencional consegue ou poderá ainda corresponder às exigências de criadores e da própria inter-relação com o seu público? Será apropriada uma arte relacional (como defende Nicolas Bourriaud) e de aproximação com o outro que possa ainda ser vivida dentro de estruturas convencionais? Haverá ou não a necessidade de um novo espaço para um novo espectador? Terão as salas convencionais a capacidade de continuar a permutarem-se de forma a corresponderem às novas exigências tanto de criadores como de inter-actores?
(6) Trata-se de “(…) uma arquitectura viva, na qual o homem, através de sua expressão gestual, constrói um sistema biológico que é um verdadeiro tecido celular”, Lygia Clark, O corpo é a casa: sexualidade, invasão do território individual, in VV.AA., Lygia Clark, 1998, p. 247.
(7) Ibidem, p. 236.