segunda-feira, janeiro 22, 2007

voxpop, #9.

VOU A TUA CASA
Maria de Assis



Tudo isto que vou dizer é real hoje, mas não necessariamente aquilo que aconteceu. Divertida esta tentativa de reconstituir uma situação que o tempo diluiu deixando uns gorgulhos aqui e acolá, acções mais duras ou mais resistentes, que não se deixaram liquefazer, vá-se lá saber porquê… O momento do embate deu-se com a leitura de uma agenda cultural electrónica. Dava-se como responsável o autor/actor Rogério Nuno Costa. Não retive o nome, apenas a proposta. Tempo: vago, cerca de um ano antes do acontecimento. Na minha casa: há talvez três anos? Foi isso, o pensamento agarrou essa ideia estranha, que me engravidou o pensamento. Ficou lá latente, produzindo teimosamente cenários imaginados, a querer presentificar o futuro. Mas faltava-me o contexto... A coragem? De pegar no telefone e pôr a imaginação à prova. Aconteceu quando uma amiga me disse que já tinha experimentado, dissipando algumas possibilidades menos desejáveis que a imaginação também tinha forjado. E foi ela que pegou no telefone e marcou. Mais tarde perguntei-me sobre o que teria mudado se não fosse ela a telefonar, que já o conhecia. Desfez-se um pouco da surpresa que faz parte das premissas... Aliás, faz sentido falar nas premissas… Foram elas que me prenderam à proposta em primeiro lugar. Atraem-me as propostas que se movem em território “neutro”, sem fronteiras definidas sobre quem é quem, como se faz e o que se espera. O Vou A Tua Casa era uma promessa disto e muito mais. Quando o Rogério veio a minha casa apareceu com alguns objectos. Recordo alguns livros, não faço ideia de quais, um rádio, velas, fósforos, papéis para escrever… Já não me lembro de quem cá estava para além de mim, da minha amiga e do meu marido. Ficou-se pela sala e cozinha. Liderou sempre a situação, ganhando confiança com o passar do tempo. Construiu-a à maneira de um ritual de iniciação ao encontro do outro, ou seja, procurou sentir a vibração da casa, dos objectos e das pessoas, devolvendo-nos, em contraponto poético, o seu entendimento de nós ali. Deixou-me as paredes marcadas de papéis colados com palavras-chave. Já não me lembro das palavras. Quando partiu ofereci-lhe um candelabro. Recordo que a segurança de estar em minha casa e a predilecção já confessada de testar as regras e os códigos de comportamento em situações novas me fez participar no jogo de forma um pouco mais activa que os outros, ou seja, a relação que estabelecemos ali, eu e o Rogério, tornou-se o espectáculo dos outros. Penso que, enquanto espectáculo, para os outros a proposta não teve metade da graça que teve para mim. Penso que a proposta do Rogério é para saborear vivendo, aproveitando esse território “neutro” para medir distâncias, gozar a capacidade de interferir no decorrer da acção, observar as reacções e continuar a decidir, passo a passo, se faço ou não faço, se estou a fazer demais ou de menos, se estou ou não a ultrapassar os limites da tolerância, da liberdade e do respeito mútuo num lugar esvaziado de referentes, lugar em que o autor se nega através do conceito que propõe, abolindo as categorias convencionadas de autor, actor e espectador. O meu fascínio por estas questões corresponde obviamente à consciência que elas se nos colocam permanentemente no dia-a-dia, ou melhor, que não as colocamos a nós próprios com a frequência e a intensidade que mereciam… Por isso temos tantas vezes a sensação de viver como espectadores da vida. Uma espécie de desafio às regras e aos códigos que conhecemos e que ali são testados e redefinidos em função das respostas a perguntas recorrentes: O que é isto? Que estão a fazer? Que querem dizer?

[Maria de Assis, 50 anos, gestora cultural]