domingo, outubro 29, 2006

voxpop, #3.

O ESPECTÁCULO HÁ-DE SER
do que vai escrito nele.*


por Nuno Quintas


Conta-se a história de uma bailarina russa e da peça arrojada que, no início do século vinte, terá interpretado perante uma plateia pouco dada a devaneios modernos. No final, quando um jornalista a interpelou sobre o que queria dizer com aqueles movimentos tão abstractos e desprovidos de narrativa, a bailarina ter-lhe-á respondido, deveras incomodada:

"Se eu conseguisse dizer o seu significado, crê que teria perdido tantas horas a dançá-lo?"

Não estou certo da primeira vez que visitei os blogues do Rogério, mas eram paragens regulares na minha blogosfera há algum tempo. Em junho, quando o descobri no Alkantara Festival, não hesitei sequer em ir (vi)vê-lo. Parti convencido que, como leitor regular, estaria em situação de vantagem; ele não me conhecia, seria fácil desarmá-lo, representar o jornalista em frente ao Rogério-artista-da-modernidade. E, como precaução última, convidei mais três amigos para um lanche de quatro pessoas. Sabemos como esta história acaba, claro: de capacete na cabeça e scone na mão, numa visita guiada ao museu do Rogério. No silêncio (inquieto) de quem mantém por norma o seu próprio mundo resguardado dos outros (como eu). Não sei se o lanche foi um espectáculo, uma performance, um simulacro de realidade. Mas, se eu conseguisse dizer o seu significado, teria perdido aquela hora a vivê-lo? Pede-me o Rogério umas palavras sobre Vou A Tua Casa. Ofereço-lhe a minha visão desse instante absolutamente nítido em que pronunciou o nome de Amares, completo com fotos e bilhetes de autocarro — como se, de repente, todas as peças se encaixassem nessa terra conjugada na segunda pessoa do singular — tu vais (eu vou) — como se o Rogério andasse nisto desde que nasceu — como se a performance tivesse começado, não quando atravessei a soleira da porta daquela casa, em Junho — mas num dia de Abril há vinte e seis anos, quando nasci.


* adaptado de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (1554?)

Nuno Quintas, 26 anos, tradutor.