A8 + Transforma + Artinsite
Entre o Festival de 2003 e o de 2004, surge o convite da Transforma para a produção de um texto que reflectisse sobre estas questões todas e outras que pudessem informar o meu posicionamento em relação à importância do lugar na criação artística contemporânea, nomeadamente (e sobretudo) ao nível do universo das artes performativas. O texto foi publicado no primeiro número da revista Artinsite, avanço editorial da Transforma que brevemente conhecerá segunda investida.
Começava assim:
Nas aulas de teatro pedem-nos muitas vezes para tentarmos olhar o espaço como se fosse a primeira vez; fazer o exercício (que começa por ser mental) de imaginar que nunca ali estivemos, que tudo é completamente novo, que cada recanto é passível de ser analisado à luz de um primeiro olhar. Começamos sempre pelo mais simples: a arquitectura da sala, a textura das paredes, os sons (interiores e exteriores), os objectos, os cheiros. Lentamente vamos mergulhando noutros espaços dentro do espaço, à medida que cada mente/corpo começa a particularizar o seu modo de ver e de estar. A sala vai-se transformando lentamente em território de guerra, selva amazónica, cratera lunar, parque de diversões, suite presidencial. Pedem-nos depois, e de forma insistente, para nos concentrarmos no espaço para lá do espaço, na possível continuidade das paredes, do chão, do tecto, como se fosse possível transgredir os limites físicos do espaço (pois eles fazem parte daquilo que já conhecemos), para lhe inaugurar toda uma nova dimensão perceptiva. À medida que o exercício avança, a simples observação ingénua de um sítio já é algo mais que um olhar primordial; entretanto surgiram leituras paralelas, estabeleceram-se relações arquitectónicas novas, inventaram-se objectos, cheiros, sensações. O corpo de cada um já começou a adaptar-se ao espaço desmultiplicado, desmultiplicando-se também em novas formas de ocupação, para se colocar estrategicamente no espaço em relação directa com as outras criações entretanto edificadas. Aos corpos, e inconscientemente, foi acontecendo o mesmo processo de transmutação: em vez de corpos despreocupados num momento de observação, passamos a ter corpos sensibilizados num momento de criação. A leitura que cada um fez da proposta foi sendo analisada também, à medida que novas directivas surgiram, o que fez com que cada corpo desmultiplicasse a sua forma de se adaptar ao espaço real, ao espaço inventado, ao espaço atravessado pelos outros corpos, e ao espaço atravessado pelas concepções de espaço propostas pelos outros corpos. No limite, um exercício que começou por ser tão simples, acabou por construir toda uma trama de relações e inter-relações de ordem não só meramente espacial, o que deu ao conjunto uma qualquer ideia de teatralização de um espaço inaugural (ou pelo menos comummente entendido como tal), e que aos poucos foi sendo habitado por corpos sensíveis. Como se de uma "no man’s land" se tratasse, inserida num lento sistema de povoamento. Por outras palavras, o que fizemos foi a possível "dramatização de um sítio", só possível por intermédio de uma observação de cariz iniciático.
...continuava assim:
Os limites físicos do objecto não existem. Não é de todo absurdo que o professor proponha no exercício de teatro que se imagine um espaço para lá do espaço; é que ele existe, de facto, que mais não seja na qualidade de "narrativa". Se o espaço imaginado é o da suite presidencial, que o espaço para lá dele seja o da grande metrópole asiática, o do espaço sideral, o do cenário pós-guerra futurista, o da paisagem bucólica, ou o da própria loucura que o colapso da imaginação pode eventualmente fazer explodir. A colocação no espaço de uma narrativa dá ao "site-oriented work" o seu carácter ritualístico. O sítio é normalmente atravessado por uma série de relações eminentemente linguísticas, baseadas em estruturas visuais alicerçadas em binómios simples: mais/menos, igual/diferente, dentro/fora, etc. O sítio concreto passa assim a ser "lido" pelo outro sítio, o imaginado. O primeiro, ajudado pela intervenção, acaba por se "auto-comentar". E isto só acontece porque em site-specific não existe uma escala de valores quando se trata de dar maior ou menor importância ao sítio ou à intervenção nele operada. As duas dimensões do sítio, qual trigo e joio em fenómeno inexpugnável de simbiose, passam a coabitar juntas na especificidade temporal e espacial que naturalmente lhes assiste. Até que a morte as separe.
...e acabava assim:
O objectivo da arte pós-moderna já não é o de proclamar a sua autonomia, a sua auto-suficiência, a sua transcendência, mas antes o de narrar a sua própria contingência, insuficiência e falta de transcendência. O mundo é feito de sedimentação, disrupção e impurezas. Coisas que nascem, coisas que vivem, coisas que morrem, coisas que se transformam noutras coisas, coisas que cedem o lugar a outras coisas. Passado, presente e futuro são para ser lidos num mesmo "objecto sensível", que o site-specific propõe, e que o homem contemporâneo, mesmo sem o saber, tem procurado cada vez mais perseguir; uma tentativa mórbida de suspendermos o tempo, quando ele quer correr mais depressa do que o nosso entendimento. O exercício de teatro que introduziu este texto nem é assim tão importante, dada a sua condição de exercício de aquecimento, mas julgo que terá ajudado a perceber que muitas vezes, para vermos as coisas de outra forma, é mesmo necessário olharmos as coisas de outra forma.