terça-feira, agosto 09, 2005

encontros no caminho.

MERCADO DA RIBEIRA
15 de Janeiro de 2005


Tal como eu, a Natacha é colaboradora da revista DIF. Confidenciou-me, numa espécie de post-performance-meeting, que escreveu o texto de enfiada, pouco tempo depois de se ter encontrado comigo. No caminho. O resultado:


Nesse sítio impossível onde é possível respirarmos os dois ao mesmo tempo, quero pertencer ao teu mundo, de forma definitiva e perdida”, disseste-me. São 10 horas da manhã de Sábado e espero-te à porta do Mercado da Ribeira. Procuro ver o que tens para me dar, por entre cheiros de peixe, talho e gente. Vejo-te, reconheço-te. Vês-me, não me conheces, perguntas se sou eu e abraças-me. Por breves instantes sinto-te a respiração e o bater do coração. Estranho teatro o teu, o de te saber só para mim, uma apresentação só para mim. Não posso atrasar-me, não posso distrair-me, estás à minha frente, só para mim. Estou à tua frente, público só para ti. Depois de algumas palavras trocadas, dás-me um auricular para ouvir o que toca no teu mini-disc. Pões um também, para que oiçamos o mesmo. Começamos a caminhar, pelo mercado dentro, a passo acelerado, como quem sabe onde vai. Estamos juntos, muito juntos, mas apenas por uma questão de comprimento de cabo. Mas como que por graça, essa contingência técnica, que não me deixa afastar de ti, faz-me pensar. Seguimos lado a lado, apenas travados pela movimentação do Mercado, ou pela senhora que nos oferece peixe. O som que me dás a ouvir, sobreposto às imagens que escolhi para vermos, são como dois diapositivos que vejo sobrepostos. Tento perceber o que oiço, constantemente distraída pelo que vejo. Seguimos em silêncio. De repente paras e convidas-me para tomar o pequeno-almoço. (Quem me convida?). Trocamos ideias, “Fumas?”. Falamos de nós (palavra que tanto gostas). Descobrimos novas conclusões. Falas-me de ti, fazes-me falar de mim, mas confesso que por vezes não te escuto, penso em quem serás tu e principalmente – o que não me costuma acontecer quando vou ao teatro –, em quem serei eu ali contigo? Posso responder, ou serei uma personagem do teu (nosso) espectáculo? Estou em cena! De repente, de novo, levantas-te e começamos a caminhar. O silêncio. Falas. E penso. Repenso a noção de teatro e dos papéis que desempenhamos quando nos encontramos para o teatro. Numa casa, na rua, ou onde quer que se possa fazer teatro (em todo o lado?). Com quem estou? És tu? Bem sei que por opção não defines a fronteira entre ti e a personagem. Sei também que fazes um exercício de redefinição do teu papel como actor. Baralhas-me. Não compreendo em que momento estou contigo (“contigo”?) ou com o teu constante improviso. Mas estou com alguém. Alguém de quem já conheço a cor dos olhos, o contorno das lentes de contacto, o desenho das sobrancelhas, a forma de falar. Fomos um do outro. Indubitavelmente marcámos as nossas vidas em determinado ponto. Será impossível falar demais. A tua performance é indesvendável na medida em que é irrepetível, e a mais ninguém fizeste ou farás igual. E assim sinto o teu teatro, como o momento em que fizeste parte da minha vida, para sempre. É com toda a certeza esta mais uma conclusão que me fazes descobrir: a do momento único e intransmissível que o teatro é. Fazes fade-out no som que oiço, tiras-me os auriculares dos ouvidos, sorris, acenas e vejo-te desaparecer por entre a multidão da Rua do Ouro.

[in DIF, n.º 25, Fevereiro de 2005]