VOU A TUA CASA
Tiago Bartolomeu Costa
21 de fevereiro de 2004
Ele entra pela porta comum e olha-nos como se fôssemos nós quem deveria dizer a primeira palavra. Os papéis estão invertidos. Avança pela casa, dispõe-se, constrange e vai às paredes ouvir a nossa voz... a que deveria dizer qualquer coisa; a que se silencia para o ouvir. Depois, invade um espaço que já não reconhecemos, revolve os objectos, devolve-os com a sua marca e pergunta se queremos o que queríamos dizer. Estamos mudos. Convida-nos para dançar, serve-se de uma bebida, mostra-nos fotografias, abre as janelas, rouba o ar da rua e oferece-nos algo nosso embrulhado em papel e fita. A surpresa deste gesto; o desembrulhar de algo que já era nosso imprime ao acto uma energia e inocência que encontram reflexo na forma como nos foi olhando ao longo do tempo. Depois vai-se embora, sem dizer palavra. Ficamos ali, na nossa casa, na nossa sala, com o nosso ar cheio da sua presença... os papéis colados na parede, as luzes acesas, o perfume nas dobras do sofá, nas linhas da mão, no nosso sorriso incrédulo. Quanto tempo fica em nós a marca de outra pessoa?
Rogério Nuno Costa desenvolveu o espectáculo Vou A Tua Casa, porque queria conhecer Lisboa; queria proteger-se da cidade que o acolhia. Entrou em casas e apartamentos, vivendas, quartos e mansões. Foi-se espalhando pela cidade à procura da forma das palavras amo-te, eu, tu... Somos nós quem o convidamos, como quem convida um amigo a jantar, à hora que quisermos, no dia que mais nos apetecer, com mais pessoas ou só com íntimos. E o Rogério chega, de saco às costas e leitor de CD’s na mão, apresenta-se, quer nos dizer para sermos naturais, continuarmos com o que estávamos a fazer, infringir todas as regras que se têm que cumprir numa peça de teatro. Aqui, em nossa casa, não é preciso fingir. Não se finge para os amigos. Como alguém que já pertenceu ao nosso espaço, ele procura a sua própria memória e nós envergonhamo-nos de termos deitado fora as suas marcas, como se faz quando nos despedimos para sempre de alguém. Mas ele voltou. Voltou para ver como estávamos, se tínhamos sentido a sua falta, para mostrar que está bem, vivo, feliz... e que nos leva com ele de casa em casa.
Se fosse só teatro, o Rogério ficava para os aplausos, fazia descer a cortina, limpava a maquilhagem, arrumava os adereços e voltava no dia seguinte. Mas Vou A Tua Casa não é só teatro... É um pedacinho de verdade, de entrega, de paixão, de procura, de memória... de amor. É a forma como olhamos para as nossas coisas e nos recordamos do exacto momento em que lhes pegámos pela primeira vez. É, em suma, um presente para ser descoberto e que antes de ser rasgado pode conter lá dentro o mundo. Ele não fica para os agradecimentos... entrega-nos ao espanto e à surpresa desarmante. Desarmados. Todos os espectáculos são diferentes porque cada casa é uma relação, uma memória, uma vida. E nós acreditamos que ele faz aquilo só para nós, como quando achamos que só nos dizem amo-te a nós.
Felizmente, o Rogério não terminou, como tinha planeado, o espectáculo no início do ano chinês. Estende-se até 12 de Março, a qualquer hora e dia, para terminar numa sessão especial no novo espaço do CEM. Aí, confrontados com a mesma história, poderemos sentir-nos tranquilos. Não fomos sozinhos na escolha. Estamos, também, ao nosso lado. E ele a ver. Porque, quem escolhe também é escolhido.