domingo, janeiro 23, 2005

casas.


MARIA & GIL

28 de Abril de 2003




A Maria substituiu-me num recital de poemas do Alexandre O’Neill, em meados de 1997, quando tive que ficar em braga agarrado à cama por uma gripe. Só a conheci depois de ter regressado. Tenho a certeza que terá sido uma excelente substituta. Provei-o a mim próprio por diversas vezes, nos anos seguintes e nos projectos vários onde ambos participámos. As imagens imediatas que me ocorrem de cada vez que penso na Maria são:



  • O jogo do espelho (que com ela fazia sublimemente);
  • A transformação do seu corpo num violino, à custa dos poemas do António Nobre e de outras coisas chinesas;
  • A transformação do seu corpo, e do meu, e dos dois ao mesmo tempo, em várias outras imagens oblíquas, à custa de outros tantos poemas, do Cesariny;
  • O Intercidades e a avaria incrédula entre as estações de Pombal e Coimbra-B;
  • A voz-off e a voz-in e mais as músicas dos Mler Ife Dada;
  • A praia do Meco e o tupperware de ovos mexidos;
  • Os headphones peludos protege-ouvidos;
  • Os coêlhos, os joêlhos e os artêlhos;



...e todas as outras memórias afectivas, com ou sem distanciamento.



A casa da Maria é também a casa do Gil; é a casa dos dois, entretanto casados. Está diferente no dia em que lá vou. Obras recentes. Cheiro a tinta, que já trago desde o início das escadas. A tinta branca. A Maria mostra-me as diferentes intensidades de luz que é possível obter numa das divisões; adquiriram um daqueles sistemas com botões rotativos, que permitem acabar com a tirania do sim e do não. Elegantemente, a Maria mostra-me todas as cambiantes do talvez. Na sala. No corredor. No escritório.



“Queres um chá, um café, um chá fresco, um sumo...?”


Começa a ser recorrente.



A pessoa que recebe encontra-se “comprometida” com uma qualquer ideia de ter que dizer/fazer/acontecer. Eu encontro-me “comprometido” com o facto de não querer que isso aconteça. Com o facto de saber que isso inevitavelmente acontece. É que a Maria nunca teve que me provar nada. Ela sempre existiu muito naturalmente para mim. Hoje parece que tudo se auto-julga cruel e permanentemente. Ainda assim, é possível cortar o ar à facalhada, abrir brechas, recuperar fôlegos esquecidos. Corta-se e cose-se nas casacas de quem vem à memória. Os boatos. A Maria recebe um telefonema da mãe e explica-lhe o que está a acontecer:



“O Rogério está cá em casa. Estou a recebê-lo porque ele está a fazer uma pesquisa...”


Uma pesquisa.



Espreito uma última vez a vista sobre o Tejo.


Saio.