quarta-feira, dezembro 01, 2004

lado b.

CAFÉ ALEGRIA
15 de Abril de 2004


Sentados na mesa mais próxima da saída, onde é possível assistir às miradas de soslaio mais estranhas vindas dos transeuntes que passam pela Praça da Alegria, e que espreitam para dentro do café à procura nunca se sabe bem do quê. Eu, a Cláudia, o Victor, os cadernos de notas novos e as saladas coloridas do Café Alegria. Notas e ideias levantadas, reunidas a-cronologicamente, à velocidade automática da minha escrita, com base num mero instinto taxonómico. O meu. Para mais tarde usar. Isto é o primeiro ensaio:

COISAS QUE JÁ ACONTECERAM

1.
Nas inúmeras viagens de Intercidades Braga/Lisboa e Lisboa/Braga que faço, fico ao lado de uma pessoa que viaja sentada ao meu lado. Durante toda a viagem, ou então durante parte dela. É que durante duas, três, quatro ou cinco horas, eu faço parte da vida daquela pessoa. De facto. Respiro o mesmo ar que ela respira, fico a conhecer os livros que lê, as músicas que ouve, as revistas que compra, sinto o cheiro da sandes de presunto que ela preparou antes de sair, oiço a conversa com a amiga que lhe liga do Porto a combinar jantar na Ribeira, desvendo a forma como ela adormece, como sonha, como disfarça que dorme e que sonha, como cai para cima do meu ombro, às vezes. E às vezes apetecia-me ir com a pessoa para o sítio que a espera; prolongar o momento; prolongar-me... Outras vezes não. Mas todas as vezes, todas, sem excepção, fico com vontade de dizer à pessoa: “Eu fiz parte de cinco horas da tua vida". De facto.

2.
Estar à espera de.

3.
Despedidas de sítios/pessoas/situações. Chegadas a sítios/pessoas/situações. Despedidas que se parecem com chegadas. Chegadas que se parecem com despedidas. A baralhação dos planos todos, de cada vez que o Intercidades pára na estação de Coimbra-B, e arranca depressa demais, sem que tenhamos tempo de perceber se as lágrimas da senhora de avental abraçada ao senhor de chapéu eram lágrimas de chegada ou eram lágrimas de despedida.

4.
Fazer parte de 5 horas da vida de uma pessoa. De facto.

5.
Entregar a nossa vida a essa ou a outra pessoa, que nos lê o destino na palma da mão. A expressão “entregar a vida a...” é da autoria da Cláudia Jardim.


COISAS QUE AINDA NÃO ACONTECERAM

1.
Visitas antropológicas a locais públicos devidamente escolhidos de antemão;

2.
Observações participantes de sítios/pessoas/situações. Nesses locais;

3.
Observações sem ser participantes de sítios/pessoas/situações. Nesses locais;

4.
Observações simples de pessoas a apaixonarem-se, a namorarem, a conhecerem-se, a despedirem-se (anotar especificamente os tipos de aproximações e/ou des-aproximações que nunca antes vi/experimentei). Nesses locais e noutros que forem surgindo;

5.
Saltar para um banco de jardim e gritar “eu amo-te!”. Na primeira oportunidade que surgir.

6.
“A cidade inteira deixa de ser uma metrópole, para passar a ser um centro de estudos artísticos”. A frase é da autoria do Victor Gonçalves.


NOTAS FINAIS

1.
Estudar novamente o sistema comunicacional do Jakobson, nomeadamente as teorias à volta da importância do discurso meramente fático.

2.
Chorar. E ganhar Óscares com isso. Por causa de se chorar muito e muito credivelmente e muito impressionantemente bem, mesmo com a objectiva da câmara espetada no nariz e o cinema inteiro realmente interessado mais na história e menos nas imperfeições da pele.

3.
Por outras palavras. Estar ao pé de ti. Perto de ti. Muito perto de ti. E tu reparares em mim.